"A camisola do dia"

O casal vivia aquela vida morninha, paradinha. Só não era mais calma porque o tenente, vez por outra, treinava a pistola no quintal, se preparando para os ladrões que teria que enfrentar para zelar pela paz social. A esposa, coitada, doméstica, prendas do lar, cozinhava e arrumava, arrumava e cozinhava. Ah, de vez em quando era cozinhada e arrumada que ele não era de deixar a patroa necessitada. Ele sabia a mulher que tinha, jamais pediria, que nada, isto não era coisa de uma mulher direita. Além do mais, ele podia errar a pontaria no ladrão e acertar nela. Esse senhor não tinha duas conversas. Aos domingos ele se deitava no sofá, depois de almoçar uma rabada bem gorda como convém a homem de verdade. Descansava ouvindo na radiola os discos dos cantores preferidos, eram esses mesmos que você pensou agora. Gostava mais do Nélson Gonçalves cantando A camisola do dia. Então, no escondidinho, ele sonhava... bela mulher aquela dos sonhos do tenente. Se acordou um dia e pulou do sofá, aquela peste de radiola não prestava mais, pois não sonhou com a mulher da camisola de Sevilla. Amanheceu a segunda feira no centro comercial. Ô rapaz, quero uma radiola. Foi entonado na farda engomada pela mulher que mulher era pra isto. O revólver do lado. Sim, senhor, qual a marca? Eu não sei disso de marca, não. Quero a mais cara, tenho como pagar. Sim, senhor, pois não. Ah, tem uma coisa, eu não quero esta aqui da porta da loja e que fica tocando aí o dia todo sem parar, toda empoeirada. Quero uma nova, de fábrica, na caixa, lacrada. Fez mais uma pose de tenente que era pra intimidar e disse: comigo é assim. Se você me chegar na porta da minha casa com uma radiola que não esteja fechada na caixa como eu disse, a coisa vai ficar feia, pois eu vou quebrar em pedacinhos e faço você voltar. Não, seu João, fique tranquilo sobre isto, o senhor vai receber do jeito que o senhor quer e gosta. Tem mais, rapaz, eu quero hoje mesmo, pois eu não sei esperar. Se chegar amanhã, faço voltar, melhor nem ir. Pois não, tenente, hoje mesmo estará em sua casa. Era segunda, estava de folga, sorriu ouvindo lá longe a voz de Nélson: “a camisola do dia/tão transparente e macia/que dei de presente a ti/tinha renda de Sevilla/ a pequena maravilha/que o seu corpinho abrigava/e eu, eu era o dono de tudo/do divino conteúdo/ que a camisola ocultava”. Que bom, hoje ela virá aos meus sonhos. Onde pago? Ali, seu João, naquele caixa. Pagou e levou a garantia. Partiu pra casa, mas antes recomendou: são nove da manhã, quero a radiola em casa na hora do almoço. Vá tranquilo, o seu sonho será realizado. Que sonho? De que fala? Olhe o respeito que eu sou autoridade. Desculpe, seu João, eu quis dizer que a radiola de que tanto gosta é o seu sonho que será realizado. Tá desculpado desta vez.