Que Situação!

Desde que comecei a entender as coisas, aprendi que “Quem dá aos pobres empresta a Deus”. A esmola vista como forma de ajuda ao necessitado, um ato de caridade cristã. Há, porém, quem defenda a tese de que “a esmola vicia o cidadão”.

Era comum em minha cidade, pessoas chegarem às portas das casas e pedirem “uma esmola pelo amor de Deus”. Uma xícara de farinha (o mais comum), ou outro gênero qualquer, tudo o que pudesse servir de alimento era bem-vindo. A forma de agradecimento era sempre ouvida: “Deus te dê saúde, fortuna, felicidade e te livre da praga do mau vizinho”. Era gostoso ver a alegria estampada no rosto daqueles pedintes, já tão humilhados pela imposição do próprio destino.

Há pouco tempo, em uma cidade vizinha a minha, estava saindo de um shopping, quando um homem de uns 60 anos abordou-me:

_ Senhora, pode me dar $R 1,00 (um real) para eu tomar um café?

Quando me virei para responder, assustou-se ao me reconhecer:

_ Minha Nossa! Não acredito no que estou vendo! Não se lembra de mim?

_ Ah! Sim, estou reconhecendo. Há quanto tempo! Não mudou quase nada, apesar de haver passado uns quarenta anos sem te ver...

Estendeu-me a mão com respeito como se estivesse diante de alguém que lhe fosse muito caro, muito superior também. Diante dessa manifestação de sentimento, nasceu em mim uma espécie de compaixão, chegando a me constranger. Situação deprimente, ver um conterrâneo que fora criança na mesma época que eu, pedindo-me esmola, trajando roupa rasgada como um mendigo. Minha primeira reação foi dizer que não tinha, que havia pagado umas contas no Banco e que não sobrara nada. Levava, na bolsa, muitos reais que poderia ter dado além do que me pediu, mas persisti na resposta negativa, apesar da sua insistência humilde que me causava certa inquietação. Sentia o coração apertado, procurando entender como o destino atua de forma diferente na vida das pessoas, umas para melhor, outras para aniquilá-las, deixando-as no mais baixo nível de miséria material e espiritual, como o que estava ali diante de mim. Pensei em dar a moeda que pedia com humildade, mas lembrei-me que “a esmola vicia o cidadão”... Não só isso. Pedir um real baixa a dignidade do cidadão. Quanto aos meus princípios religiosos, “Quem dá aos pobres empresta a Deus”. O dilema estava armado .

_ Só um realzinho... Sei que tem muito mais do que isso. Não vai lhe fazer falta. Uma doutora-advogada...

_ De onde vem a “doutora-advogada?” Por que diz isso? _ Indaguei, curiosa.

_ Doutora, fiquei velho, não fiquei doido! Estou vendo o anel de advogado no seu dedo.

Esbocei um leve sorriso e senti o coração cada vez mais sensível, onde já se havia alojado um projeto de dúvida. Enquanto me contava sua vida no longo período em que não nos vimos, em minha memória dava-se um “flash-back” aos tempos de nossa infância, em que meninas não podiam brincar com meninos. Nunca cheguei a entender nem aceitar isso, mas meninas brincavam de “casinha”, com suas bonecas e meninos jogavam futebol, bolas de gude e outras brincadeiras grosseiras. Sempre à vista dos pais ou de alguém responsável.

Contava eu, naquela época, dez anos de idade e ele, uns doze ou treze. Quase sempre, quando passava por mim, puxava meus cabelos e dizia: “Menina bonita!” Era suficiente para que me aborrecesse e fugisse dele o mais que pudesse. Um dia, estava com uma amiga assistindo uma novena na Igreja Matriz de minha cidade, quando de repente o avistamos na calçada da sacristia. Fingimos não lhe ter visto. Procuramos dissimular. O coro da Igreja entoava lindos cânticos. A ladainha de Nossa Senhora era cantada em latim. Logo em seguida, a Bênção do Santíssimo com os cânticos, também em latim, “Oremus pro pontífice nostro Pio”, “Tantum Ergo Sacramentum.” O canto final era em louvor a Nossa Senhora. Ele, na calçada da sacristia, procurava chamar a nossa atenção, cantando bem alto tudo o que o coro cantava. Tinha uma bela voz e, desde criança, participava de “shows” beneficentes.

Ao terminar o ato religioso, sem que nos visse, saímos por entre as pessoas, atravessamos para o outro lado e voltamos para nossas casas que ficavam em outra praça. A uma certa distância, senti alguém puxar meus cabelos, que estavam soltos até à cintura. Então, gritei: “Me solta”!!! Corremos à mais alta velocidade, por dois quarteirões até à praça e dois para chegarmos em casa, perdendo-o de vista. Estávamos cansadas e amedrontadas. Tínhamos apenas dez anos, mas já entendíamos que estava mal intencionado, cheirando-nos à coisa errada. Como era bastante esperto, muitas meninas tinham medo dele. Era um garoto nascido de uma família simples, formada de pessoas honestas e benquistas na cidade. Mas não era como os outros meninos, porque andava com roupas sujas e não tinha bom comportamento, assim diziam. Possuidor de bonita voz e muito ritmo, quando rapaz gostava de cantar em “shows” onde, às vezes, imitava quase perfeito, um popular cantor de samba de breque.

Confesso que aquele medo que se apoderava de mim, no passado, voltara com menor intensidade, mas o suficiente para dar uma vontade enorme de sair correndo e me livrar daquele encontro inesperado. Não sei bem o que se passava em mim naquele momento.

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Maria de Jesus Fortaleza, 12/03/2013

Maria de Jesus
Enviado por Maria de Jesus em 12/03/2013
Reeditado em 12/03/2013
Código do texto: T4183816
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