CRÔNICA DOS BELOS TEMPOS

CRÔNICA DOS BELOS TEMPOS

"Em todo os tempos os homens lutaram pela igualdade, liberdade e

fraternidade. Hoje estas palavras estão inscritas nas fachadas de todos

os prédios públicos mas acabram perdendo o sentido."

ROSSELLINI (in JORNAL DO BRASIL - RJ, 1977)

Considerando que meus pais -- neste (fim de) ano da graça de 2004 -- com 87 e 91 verões estão vivos e bem, posso calcular que já passei do que seria (ou será?) a metade de minha modesta existência... e continuo não gostando nada do período natalino. Quando trabalhava, jovem ainda, em butiques e grandes magazines cariocas, eu o detestava ainda mais.

Lembro-me de uma passagem engraçada com referência à Ceia de Natal, esbanjamento absurdo e espantoso de alimentos e bom-senso. Um grupo de quase 15 rapazes trabalhava em 2 sapatarias, na Galeria Menescal, a mais antiga de Copacabana. Os irmãos-proprietários vivam às turras e uma das "diferenças" era com relação à hora de liberar os empregados na véspera do Natal.

O pequeno e raquítico "seu" Alberto queria dispensar mais cedo, enquanto o balofo "seu" Luís Carlos segurava o pessoal até o último freguês. Nós, doidos para ir para casa, atendíamos os retardatários com visível mau-humor, "fuzilando" compradores e acompanhantes com olhares furibundos, pouco se importando com as comissões.

No meu primeiro Natal na loja "Só Crianças" sucedeu o inusitado: devido ao adiantado da hora, mais de 9 da noite, "seu" Luís decidiu promover uma ceia de Natal no restaurante de um amigo, na própria Galeria. Felizes como passarinhos nos abancamos na série de mesas ajuntadas e esperamos os "comes & bebes".

Bandejas abarrotadas pousaram solenes para nos dar um susto inesquecível: ao invés de churrasco e arroz à grega, nos desafiava os estômagos ocos uns pastéis enormes sem nada dentro, bolinhos de carne (quase) crua, bolos esquisitos lambuzados de mel e um bocado de "comidas" árabes que nunca vimos. Foi o maior desperdício de alimentos que o restaurante viveu pois, aliando protesto à decepção, o grupo inteiro debandou.

De minha vivência no Morro onde nasci não me lembro de uma só ceia, nem de visita aos barracos vizinhos e, considerando que nossa vida lá não era um mar de rosas, acho ótimo que a memória me falhe agora. Resta-me os dias de infância passados na casa dos tios, em Rio Negro/PR, em meio aos gritos dos fãs da Jovem Guarda e dos londrinos "Reis do yê-yê-yê" enquanto Jânio distribuía Brasil afora a cobiçada vassourinha dourada (um broche) com que varreira as mazelas & problemas da Pátria amada e idolatrada. Belos tempos aqueles !

O enorme presépio que ocupava boa parte da sala começava a ser montado nos primeiros dias de dezembro. Parece-me que tinha que estar pronto dia 6, sem falta. E tudo iniciava com um longo piquenique aos banhados próximos ao cemitério, num local de mata virgem denominado "potreiro". Com bambus retirávamos as "barbas de pau" das velhas árvores e, 3 ou 4 horas depois, voltávamos felizes, tendo deslizado de "trenó" pelos morros de grama lisa.

Tia Anita já estava às voltas com caixas enormes, retirando dezenas de estatuetas enroladas em jornais, além de bolas, estrelas, guirlandas prateadas e lampadas multicores. Vez ou outra uma bola espatifava-se no assoalho, com o desastrado sendo brindado com um longo assobio dedesgosto e o olhar condenatório da mais beata das moradoras da Rua Benjamim Constant. Quase uma engenheira, dona Anita construía a "cidadezinha" em 2 tempos, prática adquirida ao longo dos anos. Tio Nato conseguira um motorzinho de aquário que tornava o nosso presépio especial. O único da cidade a ter "cachoeira" e um monjolinho, com roda d'água e tudo, inclusive um "laguinho".

Descia-se um papel grosso desde o teo, pregado ou colado à parede em vários trechos, "enrugado" para parecer pedreira. Disfarçava-se com "barba de pau" e folhas verdes, pintando até, se fosse preciso. Areia e seixos, pedras lisas dos rios, tudo o que transformasse o presépio em paisagem natural. A imagem do Menino-Deus era a derradeira, introduzida com solenidade e respeito em noite de orações e festa, com salgadinhos e alegria genuinamente natalina. Mas, no fundo -- no Passado distante ou nesse exato momento -- quase todos só pensam em si mesmos, nos presentes que ganharão, nas roupas que hão de comprar, no que vão comer e beber antes & depois da Santa Ceia. O Natal exacerba vaidades e um triste egoísmo. Ainda não conheci uma só casa que se preocupasse em diminuir a fome e a precisão alheias.

Eu e meu irmão gêmeo "torcíamos o nariz" para os natais passados com os tios, sem sequer a presença de nosso "sumido" pai. Trabalhando em afazeres diversos boa parte do ano, os presentes do Papai Noel soavam como mera paga por serviços prestados. Daí o mal-estar que nos afligia. Num dos primeiros natais contrataram exímio "faquista" para dar cabo de um porcalhão (?!), imenso exemplar da espécie, com voz de Rita Pavone e pulmões de mergulhador profissional.

-- Afastem as crianças daqui... com essas "pestes" por perto o porco não morre !

-- Qual o quê, amigo! Imagine se com um facão desses o bicho "não bate as botas"?! I sso é superstição boba!

Ficamos... lacrimejantes e morrendo de pena do "bichinho", amarrado e amordaçado. Quatro certeiras facadas e nada. Mais homens para segurar a fera, outras duas lançadas e o monstro resistindo. Morreu na sétima estocada, mais furado que calça de estudante. Abancado numa mesa improvisada, o banho de água fervente para começar a depilação do bruto. Eis que de repente o animal esperneia aos berros, ventre aberto, sangue por todos os lados... ninguém ficou por perto, debandando como ratos pelos cantos da casa.

A Vida passa como um trem e nós, passageiros dela, gravamos na retina imagens indeléveis de muito do que vemos (e vivemos). Pessoas, fatos, coisas,vozes e sons... mas os momentos de Natal dentro de uma família estável, quando a situação de todos ainda permite sorrisos, é uma rara ocasião de felicidade que sempre merecerá ser lembrada. Só por isso a época já vale! E essa reunião de homens e mulheres de boa vontade ainda justifica crença na Humanidade e fé no futuro.

"Já nasceu o Menino-Deus...vinde, cantemos, oh pastores! Celebremos os louvores!"

"NATO" AZEVEDO

(ANANINDEUA, Pará, dez./2004)