Reunião de Família

Estelinha recebeu a ligação de sua irmã Salina, ela mora na Europa, hoje é tudo pertinho, você entra num avião aqui e acorda do outro lado do mundo. Salina disse a Estelinha que estaria na sua cidade natal no sábado e gostaria de fazer uma reunião de família para resolver problemas de minha sogrinha marcha lenta que vez ou outra fica batendo pino.

Dona Ester, minha sogra nota dez está com oitenta e tres anos e precisa dos cuidados das filhas para seguir o caminho inevitável da vida de quem envelhece, a derradeira hora de saber a verdade, o momento de encarar o tunel de luz do infinito, e a discusão familiar as vezes pega fogo, ninguém quer descascar o abacaxi de ficar com dona Ester, ficam naquela hipocrisia, hora demonstrando amor e noutras destilando o veneno, o ódio e as mágoas do passado acumuladas nas reentrâncias de cabeças vingativas e cheias de fofocas e maledicências, caraminholas interminaveis.

Estelinha começou a encher minha cabeça com aquele deslocamento que devíamos fazer no sábado próximo, ensaiou situações que poderiam se apresentar naquele encontro minado que estava ali, batendo a nossa porta, pois aquela batata quente, minha sogrinha nota dez ia ser assunto daqueles cheios de faíscas, pura adrenalina, combustivel altamente inflamável.

Estelinha começou a preparar as bugigangas para levar na viagem, preparou uma abóbora de "haloween" , tirou a tampa, limpou as sementes e encheu de açúcar e coco ralado grosso. A abóbora ficou no forno toda enrolada e coberta com papel alumínio, o lado brilhante para baixo, era assim que Estélinha assa os seus kitutes.

As vezes usamos o fogão para fritar alguma coisa e desastrados que somos, deixamos respingar aquele óleo. O inóx fica repleto de pinguinhos de óleo, aquela beleza. Estélinha quando vê, parece que foi picada de cobra, vira uma jararaca, fica vociferando e reclamando de todos. Eu, baixo minha cabeça e me finjo de surdo, minha orelha até esquenta com a velocidade que Estelinha tem de resmungar. As crianças se mandam, posso até ouvir eles rindo aqui e acolá, Estelinha finge que não ouve e continua reclamando. Quando acaba de limpar e desabafar parece um anjo, nada aconteceu, é difícil não amar essa mulher e mãe maravilhosa. Acho que devíamos tem mais cuidado com o fogão dela, sim, aqui em casa não somos donos de nada, tudo é dela.

Perguntei a Estelinha como ía ser a reunião, o almoço e o desenrolar do evento pirotécnico, ela simplesmente me olhou e disse que ía levar, além da abóbora com coco, uns bifes de contra filét que eu havia comprado para churrasquear em casa.

Levantamos na manhã de sábado, tomamos um café da manhã padrão, somos a antítese do conservadorismo, todo dia é uma novidade, Estélinha resolveu fazer uns sanduiches de queijo na chapa, um café forte que exalou convidativamente seus cheiros em todas as direções, um leite em pó para misturar ao café, torradas, ovos mexidos, fatias de abacaxi pérola super doces. Fui me empanturrando com aquilo tudo e observando as crianças ciscando aqui e ali, pedindo o socorro de Estelinha para se arrumar.

Estelinha colocou ração para nossas labradores creme, a mais nova estava com uma rolinha na boca e não queria largar de jeito nenhum, quando Estelinha foi pegar na boca dela dizendo dá pra mamãe, dá pra mamãe, ela se abaixou, abanou aquele rabão espanador que fica fazendo vento e soltando pelos e engoliu a rolinha, as penas ficaram espalhadas pelo quintal. Animal é animal. Labradores são animais que buscam a caça quando o caçador atira. Entram como doidas em rios e lagoas e vão buscar as aves abatidas. Esse comportamento ancestral ficou no instinto delas, as rolinhas e pardais de nosso quintal que se cuidem.

Entramos todos no carro, colocamos a comida no porta mala, o principal, passamos no posto, abastecemos o carro, calibramos os pneus e pé na estrada.

A viajem não é muito longa, dura cerca de uma hora e meia. Enquanto viajávamos, Estelinha foi ali conjecturando sobre as possibilidades e surpresas que aquele dia nos reservava. Chegamos.

Salina parecia que não nos esperava naquela hora, cerca de dez e meia da manhã, já foi fazendo aquela cara de quem está contrariada, Estelinha não deixou por menos, já foi soltando um "não está contente em me ver ?" Acho que Salina não estava contente não, pois ficou com aquela cara amuada de poucos amigos, esse acontecido foi Estelinha que me contou quando voltamos no final da tarde, não assisti essa afronta, graças a Deus, pois teria dado ré no carro de volta para nossa casa.

Olha, reunião de família é sempre uma surpresa, ainda mais quando tem mulher envolvida, me desculpem as mulheres, mas tem tanta hipocrisia que dá vontade de vomitar. Homem não se liga muito em picuinhas, quando faz não é chegado em futebol e muito menos em mulher. Meus cunhados estavam com saudade, rimos bastante e assamoscarne, enchemos a cara de cerveja super gelada, e colocamos os assuntos em dia, nenhuma rispidez, nenhuma ofensa, só alegria, enquanto as meninas, são quatro irmãs, Estelinha, Salina, Cacilda e Rose, ficaram ali com Dona Ester, destilando as falsidades sem lavar a roupa suja, que no meu entender era o que precisava.

Lavar roupa suja em família é uma beleza, gritos, choros, ofensas, gente se arranhando, se descabelando, dizendo o quanto estão ofendidas por terem sido descobertas, por serem falsas, mentirosas, orgulhosas, fofoqueiras, no fim é aquela senvergonhice geral, todo mundo se abraça, todo mundo se ama, saem dali aliviadas e podem começar a encher novamente o poço de ódio até culminar numa nova lavagem de roupa suja. Uma aula de convivência familiar, uma beleza.

As meninas se locupletaram por telefone dias a fio, Estelinha está se afastando desse caldeirão fervente, no fim, parece que não esperavam a nossa ida para lá, pelo menos para almoçar, eramos a família "non grata" na reunião de familia, esperavam que chegássemos por lá depois do almoço, queriam nos dar uma geladeira, formaram uma panelinha entre elas e nos excluiram da nata social, quase acabamos comendo abobora com coco e contra filet assado na praça.

É surpreendente as coisas de que um ser humano é capaz contra a própria família, você não pode ter sua própria opinião sobre qualquer coisa, tem que ser falso, hipócrita e fingido.

Finalmente a reunião terminou, indo para casa, fomos repassando os acontecidos naquele dia. Ficamos surpresos e agradecidos, pois nossa atitude incomodou-os demais. Combinamos de tratar somente dos assuntos de Dona Ester com a família, outros assuntos, vamos tratar somente quando inquiridos. Como diz um amigo nosso, família é bom só para tirar fotografia. De qualquer forma estamos prontos a ajudar Dona Ester sempre que ela precisar de nossa ajuda.

Sei que Estelinha, no fundo, está magoada com a falsidade e a incompreensão, não existe pessoa mais dedicada a familia do que ela, sempre foi, estou com ela há quase trinta e dois anos, e seus esforços foram direcionados para a união familiar. No momento em que ela parou um pouco, foi afastada, expulsa, vitima da hipocrisia e do desamor.

Reunião familiar é um campo minado, é uma escola, um preparo para o mundo, nunca vá a uma reunião para fazer complôs, tome posição, seja coerente e procure não divagar demais, esteja sempre pronto para falar a verdade, mas aguente as consequências, vai ser aquela explosão.