Sob o céu do povo da estrela Sirius

Estávamos em Bamako, capital do Mali. Bistrô francês. Imitação pretensiosa do cenário do filme Casablanca. O proprietário, europeu genérico, com a aparência e a indumentária de um mercenário branco. Caqui com manchas de suor nas axilas. Cão de guerra. Sua companheira, mulher indochinesa de meia idade. Souvenir do Vietnã da França. Música congolesa tocando no rádio. Barulhenta. Africana. Pequena concessão do proprietário à cultura nacional. Ah, “le noir, raça primitiva.” Suspiro profundo, seguido de um gesto gaulês de impaciência. Os desgraçados da terra. “Oui, Patron. Oui, Madame”.

Partimos no dia seguinte para visitar o País Dogon, na região oriental do Mali. Tribo de mais de 300 mil pessoas, vivendo em aldeias instaladas nas escarpas de Bandiagara, ao leste do Rio Niger. Arquitetura interessante. Novos vilarejos construidos sempre abaixo das ocupadas por seus anscestrais. Estrutura central chamada de “togu-na”, casa da palavra. Anciões reunidos, discutindo assuntos comunitários. Teto baixo, forçando todos a permanecerem sentados. Diminuindo a possibilidade de discussões ou brigas.

Nosso fascinio com o País Dogon, comecou quando assistimos um documentario sobre a arte tribal africana. Povo das mascaras que inspiraram Picasso e as cores que influenciaram profundamente a Matisse. Sociedades secretas. Crianças de Sirius. Descendentes dos mestres...

Conheciam com precisão o sistema estelar de Sirius e os seus períodos orbitais. Transmitido secreta e oralmente, por seus sacerdotes, há séculos antes dos astrônomos. Com Sirius A, flutuando em um "ovo dourado", veio Amma, que criou a Terra. Depois, Amma mandou os Nommo para o nosso mundo. Nommo, os "Mestres", eram seres anfíbios. O povo Dogon utiliza as máscaras nas cerimônias chamadas Dama e em rituais agrícolas cíclicos. Mais de 65 mascaras diferentes. Forma complexa e multifacetada de expressão artística, o Dama ocorre geralmente num período de seis dias por ano. Centenas de espíritos mascarados variados participam. O ritual promove a expulsão permanente das almas ou dos espíritos daqueles que morreram desde o último Dama. Facilitam sua incorporação no reino sobrenatural com os antepassados. O mundo Dogon, um todo integrado. Relacionando o cotidiano com o tempo e o espaço...

Começamos a descida na escarpa em uma pequena cidade chamada Sanga, às cinco horas da manhã. Íngreme, trabalhosa, misteriosa. Dez quilômetros. Caminhávamos devagar. Saudados extensivamente por todas às pessoas que encontrávamos. Múltiplas perguntas sobre nossa família, vilarejos, animais... O filho do chefe, o primogênito, nos esperava na base. Guiaria-nos durante a visita. Pernoitaríamos na sua casa, em uma aldeia chamada de Tereli.

Nosso guia transmitiu um convite do chefe. Solicitava nossa presença na “togu-na”, casa da palavra. Conversar com o homem branco, o “griot” brasileiro. Contador de historias. Primeiro as saudaçõas. Depois... Queriam saber tudo sobre “le Roi”, Pelé. Haviam assistido poucas partidas. Todos atentos. Silencio geral. A palavra era nossa. Que poderiamos dizer? Nunca fomos aficionados ou conhecedores do futebol. Nossa paixão pelo esporte ressuscitava de quatro em quatro anos, com a Copa do Mundo. Curiosos por mais informações sobre as jogadas, os gols, os triunfos. Passamos a noite narrando jogadas, reais ou imaginarias. Demandavam entusiasticamente a repetição daquelas que gostavam. Geralmente as mais fantasiosas. Nunca lembrávamos totalmente da versão anterior. Pelé possivelmente havia feito mais de 1.000 gols, só de bicicleta. Não importava. Pelé, Pelé, Pelé... Ídolo do povo africano. Éramos brasileiros...

Passamos vários dias visitando aldeias. Recebidos calorosamente por subchefes e outras autoridades. Mais saudações. Crianças de todas as idades nos seguindo, chutando bolas de futebol, latas ou pedras. Partimos. Rumo a nossa aldeia...

Anos depois... Anoitece na orla do Cabo Branco. O barulho é infernal. Forró competindo com pagode; pagode competindo com axé. Pessoas caminhando sem sequer olhar para o oceano. Procuramos Sirius. Companheira do verão. Maravilhosa. Estrela do povo Dogon. Brilhando no céu do nosso país. Poucos a reconhecem no circulo azul do símbolo da Pátria. "Porque não temos a nossa casa da palavra", perguntamos. Todos sentados, mesma altura. Sob o céu de Sirius...

Palmari H. De Lucena é membro da União Brasileira de Escritores

Blog: http://palmarinaestrada.blogspot.com