Coisas de Herança
Tenho uma pequena cicatriz na face. Quando me perguntam, respondo que foi um tição de fogo que caiu no meu rosto. Será que me lembro realmente? Ou sei por que me contaram?
Então começo a me lembrar do meu velho Vô Nicolau. Italianinho dos bem rabugentos. Faleceu quando eu tinha três anos. Mas me lembro bem dele. Um homem pequenininho e que falava um pouco enrolado.
Sempre me levava à horta. Gostava de cortar um jiló em cruz, tirava um embrulhinho de sal do bolso, e comia com o maior prazer. Mais tarde fiquei sabendo que o sal não era bom pra ele. se Vó Rosa soubesse, ia dar "pano pra manga". Velha cabloca, baixinha e brava. que puxando de uma perna, dominava os nove filhos e o pobre do italianinho.
Quando o velho ia pra serraria da fazenda e via que Vó Rosa depenava uma galinha, gritava:
_Põe as tripas no sol pra feder!
Era sinal de pescaria. E à noite voltava do açude com uma enfileira cheia de piaus.
A casa ficava bem na entrada de uma mata, a mata de Santa Filomena. Na companhia dele, seguia uma trilha e íamos até a nascente dàgua. Cada parasitas enormes florindo nos troncos da árvores. Samambaias gigantes, orquídeas e bromélias. Era lindo! Aliás, a natureza sempre foi mais cuidadosa e caprichosa do que as mãos dos homens. Elas sempre ficam mais belas em seus habitas naturais.
Aprendi com ele a comer rã, essa coisinha horrorosa que muitos tem nojo, e olha que é gostoso! Gostava de ouvi-lo tocar sua "oito baixos". Enquanto tocava, contava suas histórias sobre a vinda da Sardenha. Saia músicas saudosas. Segundo ele, vieram escondidos num navio. Ao chegarem no Brasil, escapuliram antes do porte. Muitos só se encontraram anos depois.. Talvez tenhamos alguma herança na Sardenha.
Hoje, sei apenas que deixou sua velha sanfona, um serrote,um martelo, um formão, um relógio de parede, uma lamparina de cobre, que ganhei do meu pai como presente de casamento.
Herdei também a pirraça, o que guardo até hoje, o gosto pela aventura, pelas plantas, pela pescaria e pelas coisas amargas como o jiló, pois assim é a vida. A gente põe um salzinho e vai levando.