Artifícios que podemos usar para violar as regras

ARTIFÍCIOS QUE PODEMOS USAR PARA VIOLAR AS REGRAS

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 06.03.13)

Cito de memória, pois não consegui localizar o texto exato nem a fonte de uma nota publicada há poucos dias neste "Diário". Tratava-se de uma postagem feita por um delegado de polícia num sítio qualquer de rede social às vésperas de uma expressiva operação de repressão ao crime. Referindo-se à operação, ele escrevia mais ou menos assim:

- Amanhã o bixo vai pegar!

O mais ou menos vai por conta da frase como um todo, não da palavra bixo, grafada por aquela importante autoridade pública assim mesmo, com x.

Não sei quem é o dito delegado de polícia, nem onde ele opera, e isto pouco importa para o nosso caso. O que nos interessa como cidadãos e contribuintes é que a grande operação anunciada tenha sido o retumbante sucesso que se pode esperar de tamanho entusiasmo derramado pelo ilustre policial com a sua iminente execução. Ignoro igualmente quais as explicações que ele poderá ter dado sobre sua frase bixada, digamos assim, com todo o respeito, se é que ele se deu ao trabalho de dá-las, e isto igualmente não é detalhe que nos importe neste contexto (para sermos coerentes com o título geral destas crônicas diárias no nosso "Variedades").

Por idêntico motivo, pouco importa identificar com precisão a professora do ensino médio (antigo 2º grau, mais antigo ainda curso colegial, que podia ser científico ou clássico) que gosta de afirmar que vírgulas, ortografias, concordâncias, flexões e regências, essas coisas complicadas todas do Português e da Gramática, não são matéria com que deva se preocupar, inclusive em sala de aula, porque ela ensina Matemática e precisa saber bem, portanto, é da sua área específica, ainda mais porque, segundo ela, e ela afirma como se isso fosse verdade científica incontestável, números nunca se dão muito bem com letras. Como se professor, assim como gente, não fosse um ser integral.

Todos nós conhecemos duas, três, quatro dessas professoras, bem como dezenas de profissionais universitários, e centenas de autoridades públicas, que levam uma surra do idioma de que dispõem para se comunicar e cometem barbaridades ao falar e, maiores ainda, ao escrever (por isso, certamente, que muita gente foge do pavor da elaboração de um texto informativo ou explicativo qualquer, assolada pela disfunção que a acomete na hora de colocar ideias e palavras no papel - o qual pode ser uma tela eletrônica qualquer).

A desculpa geral é que Português é ferramenta exclusiva de profissionais da área, sejam eles escritores ou professores da matéria. Fora esses, ninguém seria obrigado a saber se comunicar com um mínimo de clareza e decência.

Ao presenciar toda essa discussão, Manoel Osório, que não é gente das mais chegadas aos assunto do bem falar e do bem escrever (atividade, esta, que detesta exercer tanto quanto a leitura, prima-irmã da escritura), não se conteve, escandalizado:

- Mas como?! Se eu não for profissional da área, estarei desobrigado de cumprir as regras?! É isso que diz esse delegado e ensinam esses professores e propagam esses profissionais todos? Foram fazer o que na universidade, especializarem-se num departamento e esquecerem que o homem, a sociedade e o mundo se fazem de todas as partes conjuntamente? Muito bem: não vivo da direção, não sou motorista profissional. Portanto, posso pegar o meu carro e sair por aí atropelando e matando gente. E ninguém vai poder me pegar porque não sou obrigado a dirigir certo.

Pensou um pouco e concluiu:

- É bom saber disso, bixo.

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Amilcar Neves, envolvido com a criação de uma nova novela, é escritor com oito livros de ficção publicados, alguns dos quais à venda no sítio da TECC Editora, em http://www.tecceditora.com.

"Enquanto não fabricarmos nossa própria mecha e nossa própria pólvora, enquanto não adquirirmos uma consciência visceral da necessidade de nossa própria explosão, de nosso próprio fogo, nada será profundo, verdadeiro, legítimo, tudo será uma simples casca, como agora é casquinha, só casquinha, nossa tão apregoada democracia. E se nossos próceres, incluído seu avô, podem dizer impunemente que têm as mãos limpas, isso só se deve a que nosso conceito de higiene política deixa muito a desejar."

Mario Benedetti, Gracias por el Fuego.