Suspiros no entardecer
Hoje, 5 de março de 2013.
O sol mal se debruçara sobre o mar azul da Pituba e o meu telefone chamou. Atendi-o me espreguiçando, esfregando os olhos, e amaldiçoando o que, de pronto, considerei um telefonema, no mínimo, inoportuno, pra não dizer outra coisa.
Com certeza, ninguém sabia que minha madruugada fora de pequenos cochilos. Não conseguira mergulhar no sono profundo e reparador dos justos. E olhe que me considero, sem cabotinismo, um deles.
Do outro lado da linha, uma voz cansada me dava parabéns pelo meu aniversário, ao som de uma canção do Orlando Silva. Gostei. Nada daquele chato e manjado "Parabéns pra você - Nesta data querida!".
Não consegui identificar quem me enviava a delicada mensagem. Mas a canção do Orlando, eu conhecia muito bem: Deusa do Cassino; valsa lançada pelo cantor das multidões em 1938. Eu tinha, apenas, ... anos de idade; depois eu digo.
Será que alguém ainda se lembra dessa belíssima valsa orlandina?
Aqui vai, neste espaço que a sorte me confiou, sua primeira estrofe: "Ninguém foge ao seu destino/ E por isso num cassino/ Eu vim a te conhecer/ Como louca borboleta/ Volúvel como a roleta/ Deusa do luxo e do prazer./ Sentada na minha frente/ Jogavas nervosamente/ Sem acertar uma vez./ Era um duelo de morte/ Que sustentavas com a sorte/ Com teu destino talvez."
Muito bem. Ouvi a valsa e desliguei o telefone.
Tomava o meu café da manhã, saboreando um cuscuz de milho feito por mim, quando o diabo do telefone voltou a chamar.
Outra canção do Orlando, um sonoro poema de amor à moda antiga. Desta vez, a pessoa que me parabenizava identificou-se, dizendo: "Sou fulano de tal, seu velho companheiro de memoráveis patuscadas. Tá lembrado?" E eu: tô!
Como dele não me lembrar? Um pisciano como eu, também nascido no dia 5 de março, não sei bem de que ano. E passamos, então, a recordar nossas traquinagens nos bordeis da vida, quando mal havíamos alcançado nossos vinte e poucos anos.
Deixamos o Ceará no mesmo ano. Vim para a Bahia e ele foi para Belém do Pará. Muitas décadas já se haviam passado, desde o nosso abraço de despedida.
Como os jovens do nosso tempo, ele e eu românticos, também gostávamos de poesia.
Incontáveis vezes, sentados nos bancos da Praça do Ferreira, ao pé da velha coluna da hora, invadimos as madrugadas, falando sobre poetas e de poesia. Dois sonhadores soltos na noite cálida de Fortaleza, lá pelos anos 1950.
De repente ele lembrou que gostávamos de Cruz Filho (1884-1957), poeta cearense, nascido na cidade santa de Canindé.
E da Canção da Cigarra, ele declamou estes versos: "E a velhice aí vem. Vem com os seus frios/ Com o seu tristonho, o seu brumoso inverno,/ E os céus, que eram azuis, ficam sombrios,/ Desfaz-se o tempo que eu supunha eterno."
Atalhei-o, lembrando-lhe Bastos Tigre (1882-1957), o poeta pernambucano que, nas nossas improvisadas tertúlias literárias sob o céu de Fortaleza, em noite de plenilúnio, nós também gostávamos de declamar.
Se eu ainda sabia de algum poema do belo vate recifense, respondi-lhe com este soneto:
Envelhecer
Entra pela velhice com cuidado,/ Pé ante pé, sem provocar rumores/ Que despertam lembranças do passado,/ Sonhos de glórias, ilusões de amores.
Do que tiveres do pomar plantado/ Apanha os frutos e reconhece as flores;/ Mas lavra ainda e planta o teu eirado,/Que outros virão colher quando te fores.
Não te seja a velhice enfermidade!/ Alimenta no espírito a saúde./ Luta contra as tibiezas da vontade!
Que a neve caia! O teu ardor não mude!/ Mantém- te jovem, pouco importa a idade! Tem cada idade a sua juventude...
Depois de uma demorada e saudável troca de versos e de saudades, fechamos o papo na companhia do extraordinário poeta cearense Padre Antônio Tomaz (1868-1941).
Do velho cura alencarino,
Contraste
Quando partimos no verdor
dos anos,/ Da vida pela estrada florescente,/ As esperanças vão conosco à frente,/ E vão ficando atrás os desenganos.
Rindo e cantando, célebre, ufanos,/ Vamos marchando descuidosamente;/ Eis que chega a velhice, de repente,/ Desfazendo ilusões, matando enganos.
Então, nós enxergamos claramente/ Como a existência é rápida e falaz,/ E vemos que sucede exatamente,
O contrário dos tempos de rapaz: o Os desenganos vão conosco à frente,/ E as esperanças vão ficando atrás."
Encerrado o telefonema, ao inesperado encontro, não sei por que, chamei-o de suspiros no entardecer...
Nota - Foto do aniversariante, no verdor dos anos, encontrada por acaso no seu baú de boas recordações!
Hoje, 5 de março de 2013.
O sol mal se debruçara sobre o mar azul da Pituba e o meu telefone chamou. Atendi-o me espreguiçando, esfregando os olhos, e amaldiçoando o que, de pronto, considerei um telefonema, no mínimo, inoportuno, pra não dizer outra coisa.
Com certeza, ninguém sabia que minha madruugada fora de pequenos cochilos. Não conseguira mergulhar no sono profundo e reparador dos justos. E olhe que me considero, sem cabotinismo, um deles.
Do outro lado da linha, uma voz cansada me dava parabéns pelo meu aniversário, ao som de uma canção do Orlando Silva. Gostei. Nada daquele chato e manjado "Parabéns pra você - Nesta data querida!".
Não consegui identificar quem me enviava a delicada mensagem. Mas a canção do Orlando, eu conhecia muito bem: Deusa do Cassino; valsa lançada pelo cantor das multidões em 1938. Eu tinha, apenas, ... anos de idade; depois eu digo.
Será que alguém ainda se lembra dessa belíssima valsa orlandina?
Aqui vai, neste espaço que a sorte me confiou, sua primeira estrofe: "Ninguém foge ao seu destino/ E por isso num cassino/ Eu vim a te conhecer/ Como louca borboleta/ Volúvel como a roleta/ Deusa do luxo e do prazer./ Sentada na minha frente/ Jogavas nervosamente/ Sem acertar uma vez./ Era um duelo de morte/ Que sustentavas com a sorte/ Com teu destino talvez."
Muito bem. Ouvi a valsa e desliguei o telefone.
Tomava o meu café da manhã, saboreando um cuscuz de milho feito por mim, quando o diabo do telefone voltou a chamar.
Outra canção do Orlando, um sonoro poema de amor à moda antiga. Desta vez, a pessoa que me parabenizava identificou-se, dizendo: "Sou fulano de tal, seu velho companheiro de memoráveis patuscadas. Tá lembrado?" E eu: tô!
Como dele não me lembrar? Um pisciano como eu, também nascido no dia 5 de março, não sei bem de que ano. E passamos, então, a recordar nossas traquinagens nos bordeis da vida, quando mal havíamos alcançado nossos vinte e poucos anos.
Deixamos o Ceará no mesmo ano. Vim para a Bahia e ele foi para Belém do Pará. Muitas décadas já se haviam passado, desde o nosso abraço de despedida.
Como os jovens do nosso tempo, ele e eu românticos, também gostávamos de poesia.
Incontáveis vezes, sentados nos bancos da Praça do Ferreira, ao pé da velha coluna da hora, invadimos as madrugadas, falando sobre poetas e de poesia. Dois sonhadores soltos na noite cálida de Fortaleza, lá pelos anos 1950.
De repente ele lembrou que gostávamos de Cruz Filho (1884-1957), poeta cearense, nascido na cidade santa de Canindé.
E da Canção da Cigarra, ele declamou estes versos: "E a velhice aí vem. Vem com os seus frios/ Com o seu tristonho, o seu brumoso inverno,/ E os céus, que eram azuis, ficam sombrios,/ Desfaz-se o tempo que eu supunha eterno."
Atalhei-o, lembrando-lhe Bastos Tigre (1882-1957), o poeta pernambucano que, nas nossas improvisadas tertúlias literárias sob o céu de Fortaleza, em noite de plenilúnio, nós também gostávamos de declamar.
Se eu ainda sabia de algum poema do belo vate recifense, respondi-lhe com este soneto:
Envelhecer
Entra pela velhice com cuidado,/ Pé ante pé, sem provocar rumores/ Que despertam lembranças do passado,/ Sonhos de glórias, ilusões de amores.
Do que tiveres do pomar plantado/ Apanha os frutos e reconhece as flores;/ Mas lavra ainda e planta o teu eirado,/Que outros virão colher quando te fores.
Não te seja a velhice enfermidade!/ Alimenta no espírito a saúde./ Luta contra as tibiezas da vontade!
Que a neve caia! O teu ardor não mude!/ Mantém- te jovem, pouco importa a idade! Tem cada idade a sua juventude...
Depois de uma demorada e saudável troca de versos e de saudades, fechamos o papo na companhia do extraordinário poeta cearense Padre Antônio Tomaz (1868-1941).
Do velho cura alencarino,
Contraste
Quando partimos no verdor
dos anos,/ Da vida pela estrada florescente,/ As esperanças vão conosco à frente,/ E vão ficando atrás os desenganos.
Rindo e cantando, célebre, ufanos,/ Vamos marchando descuidosamente;/ Eis que chega a velhice, de repente,/ Desfazendo ilusões, matando enganos.
Então, nós enxergamos claramente/ Como a existência é rápida e falaz,/ E vemos que sucede exatamente,
O contrário dos tempos de rapaz: o Os desenganos vão conosco à frente,/ E as esperanças vão ficando atrás."
Encerrado o telefonema, ao inesperado encontro, não sei por que, chamei-o de suspiros no entardecer...
Nota - Foto do aniversariante, no verdor dos anos, encontrada por acaso no seu baú de boas recordações!