A Ressaca

- O guisado de carneiro está uma delícia! Coma senhor António, não se faça rogado, coma.

- Não leve a mal senhor Freitas, mas acabei de tomar o pequeno-almoço ainda há pouco. – Mentiu António, como meio de evitar comer qualquer coisa. Sentindo ainda a cabeça andar à roda, fruto dos exageros da noite anterior.

- E o que é isso para um jovem como vossemecê? Olhe, mais do dobro da sua idade tenho eu e já mandei abaixo dois nacos com broa e uma caneca de verde. Oh será que vossemecê não gosta de carneiro?

- Gosto! Mas é que…- António, não acabou a frase, estarrecido, ao verificar que o pai do noivo o servia com o gordurento guisado.

- Chega, chega senhor Freitas, chega!

António era um dos amigos do noivo, o Felipe, um camarada dos tempos em que ambos cumpriam o serviço militar em Mafra. Viera de Lisboa a convite do amigo, cumprindo assim a promessa feita dois anos antes, de ser o padrinho de casamento.

Chegara na véspera, ainda a tempo de assistir à despedida de solteiro do Felipe. Entre o entusiasmo dos convidados com o noivo e atenções com o padrinho, foram brindes e mais brindes a ponto de agora de manhã, com a cabeça azamboada, sentir repulsa pelo guisado.

Agora, alvo da atenção do senhor Freitas, não sabia o que fazer com o prato acotulado de carne. O que lhe apetecia era uma aspirina e uma garrafa de água das pedras e não aquele montão de carne. Sentindo-se observado por mil olhos, não sabia o rumo que dar àquela pratada.

- Olha o lisboeta! Então já a atacar num prato tão levezinho? - Comenta Inácio, um amigo do noivo. Um dos culpados de tantos brindes da véspera. – Ora amigo António, a avaliar pela sua expressão, acho que esse prato foi uma imposição do pai do Felipe. À força, quer enfiar pelas goelas abaixo dum homem, o raio do carneiro que tinha guardado para o casamento do Felipe. A mim também tentou o mesmo, mas eu fiz-lhe um manguito…olhe, quem se consolou foi o «bóbi».

- Mas o que quer que eu faça, com toda esta gente que não deixa de me mirar?

- Não os leve a mal, é a curiosidade natural sobre o padrinho do Felipe, que veio de Lisboa. Mas, venha comigo e meta uma garfada na boca, fingindo um ar feliz, que eu já lhe digo como dar a volta ao velho Freitas.

António desceu as escadas atrás do Inácio, que se dirigia para a adega.

- Bom dia ti Anacleto! Então vossemecê não entra?

- Oh filho! Custa-me subir esses degraus, se calhar, fico por aqui mesmo ao sol e peço que me tragam qualquer coisa que se coma, pois ainda estou em jejum.

- O que é que me diz a um pratinho de carneiro guisado que está de se lamber os dedos?

- Digo que até te deixo namorar com a minha neta, se ela quiser, bem entendido.

- Vossemecê e a sua neta! Por si, a moça já tinha namorado com todo povoado, mas cos diabos, ainda vou tentar a minha sorte já que tenho a autorização do avô.

- Tens? Tens se me arranjares o que prometeste!

- Olhe nem é tarde nem é cedo… ora aqui está. – Remata Inácio com um grande sorriso, estendendo o prato do António. – Agora não se ponha a tasquinhar que há lá muita comida e até à hora da boda, ainda se roçagava um carro de mato.

- Tasquinhar? Vais ver a volta que isto leva, apesar da minha falta de dentes.

- Venha, venha amigo António, viu como se faz uma obra de caridade e ainda o livro do carneiro.

- Você ainda não viu o Felipe? – Perguntou António, já mais bem-disposto, após ter visto desaparecer o prato da carne.

- Deve estar a amaricar-se! Sabe como é, só se casa uma vez.

- Oh, oh, oh, isso era antigamente! – Riu o António.

- Cá no coração do Minho, o casamento continua a ser para vida inteira.

- No sul, também só se pode casar uma vez pela Igreja, mas já começa a ser de admirar os casais que não se divorciem passado uns tempos.

Embalado com a conversa, António mal se apercebeu que entrou na adega. Era uma loja ampla em chão saibroso, duro como o cimento, compactado por maços e milhares de vezes pelos pés, no constante entra e sai, na lide do dia-a-dia. A um canto, um lagar com as paredes em grandes lajes de pedra e no meio, uma enorme prensa. Ao fundo, numa zona mais resguardada viam-se pipos, pipas e tonéis, dispostos harmoniosamente, em forma crescente. De volta dum grande arcaz, ricamente coberto por uma toalha de linho, o mesmo grupo da despedida de solteiro, em grande açougada, já confraternizava há um bom bocado, a avaliar pelo desbaste no presunto e pratos sujos de restos de rojões e tijelas de verde.

- Ora viva o padrinho! – Gritaram, mal assomou à porta. – Então, ainda é vivo? Seja bem-vindo à secção dos machos de barba rija. Olhe que para mouro, o amigo até se portou muito bem… É rapaziada!.. Quem é que serve uma malga de tinto aqui ao padrinho?

- Meus senhores, eu peço desculpa, mas ainda não me sinto muito bem.

- Não se preocupe, meta primeiro uma lasca de presunto pró buxo e em seguida deite a tigela abaixo e vai ver que arrebita em três tempos. Sabe como é o ditado; cura-se a ferida do cão com o pêlo do mesmo cão. Olhe aqui o Zé Pequeno, ontem saiu de gatas e hoje está fino que nem um alho.

- Está, é com uma secura que não para de molhar a pragana. – Comenta desta feita, o Arlindo da Azenha. – Põe-te a pau, que eu hoje, não tenho ideia de carregar contigo outra vez.

- Nem eu contigo! É que se ainda fosses uma gaja boa, vá que não vá. Agora um marmanjão do teu tamanho, sujeitando-me a dar algum jeito nas costas, Deus me livre de tal sacrifício. – Observa o Zé Pequeno, com boa disposição.

- Sendo assim, seja o que Deus quiser! – Exclamou António, enquanto emborcava a tigela do verde.

A sede foi colmatada após a segunda tijela, e fosse como fosse, António já sentia como novo, pronto para a cerimónia do casamento do amigo.

Lorde
Enviado por Lorde em 04/03/2013
Reeditado em 05/03/2013
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