Asas circulares

De repente, percebi sua ausência. Informaram-me que estava internado em um hospital com feridas pelo corpo. Lembrei-me do dia em que me mostrou uma, no local em que ele chamava de mão, que estava demorando a cicatrizar. Pobre Seo Antônio... De sol a chuva, com a ajuda da sua tia, montava a banquinha na calçada e passava o dia vendendo guardanapos. Divertia-me muito quando ele entrava na agência bancária em que presto serviços, assoviando raízes sertanejas, e dizia que estava armado e que iria assaltar o banco. Dizia, e ria sincero.

De todos os casos que me contou, um marcou-me. Quando era jovem, Seo Antônio era motorista. Em uma ocasião, foi descarregar uma carreta. Disse-me que ninguém conseguia estacionar no local correto pois, caso entrassem de ré, sobrava menos de palmo de cada lado; então, paravam as carretas à entrada do beco. Mas ele conseguiu! E quando saiu da gabina, sem que tivesse percebido a aproximação, uma vez que ocupava-se em manobrar, uma grande quantidade de pessoas que observavam a cena o aplaudiram pelo feito. Seus olhos brilhavam ao contar-me isso, transparecendo saudosismo, mas sem tristeza pelas recordações.

Ficava encantado ao vê-lo abrir o maço de cigarros, colocar o cigarro na boca, acender e fumar. Admirava vê-lo comer também: que maestria! Certo dia vi um documento assinado e comentei a respeito da letra feia. Informaram-me que era do Seo Antônio: calei-me.

Não me recordo se foi ele ou terceiros que me contaram ter sido picada de cobra. O que Seo Antônio relatou-me foi que quando começaram a mutilá-lo, largou da esposa. Que bravura! Talvez no momento em que mais precisou da companheira, não quis fazê-la sofrer consigo. Não sei a ordem nem o intervalo entre as amputações mas sei que lhe cortaram as duas pernas, na altura dos joelhos e as duas mãos, na reta dos punhos. Hoje, feridas tomam seu corpo. Mas ainda espero vê-lo adentrar novamente a agência, assoviando e feliz, manobrando sua cadeira de rodas motorizada Freedom.