DOIS IRMÃOS - DOCHA E MILITÃO
Lá inriba no-tupete atrás do artin, na grota, bem nas entranhas da matinha tem uma moitinha pouca de bananeira prata bem do lado de uma piorra, e é de lá de -debaixo da chanfra duma lasca de pedra bruta que brota a mina d’agua - ali, pura. Nasce entremeio a pindaíbas-de-folhas-pequenas aos borbulhos, e vai descendo a encosta de mansinho correndo a dedos, dedos d’agua rompendo serra abaixo. Regato és, e fria a sombra da capoeirana que te cobre - mas quando enfurecido o corguinho enche tornando-se assombroso, devastador e arrasta tudo que está a frente - junto vai cipó, garranchos e folhagens apodrecidas resvalando desfiladeiro abaixo, sempre no mesmo percurso. Desce fazendo o típico barulhinho que ao quebrar do vento na copa das árvores e o som do canto dos pássaros que ecoam misturando-se ao zumbir dos insetos - aqui e acolá - revelam assim uma perfeita harmonia orquestrada de vidas naquele ambiente onde a natureza encanta e vibra.
No lançante da pirambeira fazendo voltas e rolando pedras segue sua trajetória molhando aos pouquinhos aquele sertão esmarrido até chegar na soleira da baixadinha na terra da promissão, terra essa herdada dos pais dos pais dos avós, daqueles que primeiro habitaram a região.
Sertão pelado, nu, quais sem plantação, quais sem gente, quais sem vida... Quais, porque do fundo do raso riacho vejo como em enigmas vidas paridas surgindo; Vejo porque a pouca água é límpida e cristalina; Surge um, dois homens maduros, experimentados e eles têm nome. O primeiro é Docha! O segundo se chamar por Militão ele responde. - Eles moram naquela choça sozinhos à beira brejo, quase um pau-a-pique; Sobrou os dois solteirões e os animais, fieis companheiros. Quem não partiu pra sempre, foi-se dali.
Docha é simprão e Militão é Tan-tan!!! - Docha e Militão tem “as -idéia trapaiada”, sobrevivem como dá no meio da bicharada.
Se não fossem as criações a solidão seria ainda maior, pois estas enfeitam e dão um pouco mais de vida àquele lugarejo; Ali existem bichos, muitos bichos, bichos de pé e bichos no pé; A sabucada no terreiro dá a noticia: Naquele chafurdeiro a vida é assim - Todos juntos e misturados!
As rolinhas voam, saltando e brincando em meio aos porcos que soltos andam pra lá e pra cá - deitam, fuçam, espojam e comem, mas não ouço seu roncar. O gato também aparece com seu jeito misterioso de olhar, e assusta - zói de gato mete medo! - Ele mora lá, rato nem sempre... Anda, corre, sobe, desce, rela, mas também não ouço seu miar.
O cachorro magricelo desorientado vira lata a procura de qualquer coisa para abocanhar - vive incomodado mesmo com as moscas que atacam violentamente uma bicheira mal-curada numa das orelhas que caiu de tanta mordida ao coçar, quando não usa um dos pés para espanar é na base do dente mesmo - de raiva pega mosca no ar - o rabo não vence afastar as terríveis voadoras; Pra caça este réques não serve, nunca encovou nem um piriá, se latir pode saber é fome, e não adianta estumar - só avança para cheirar canela dos visitantes ou então correr atrás de garrinchinhas que jamais conseguiu pegar - quer mesmo um pedaço de angú, sombra e água fresca para saciar sua árdua rotina de cachorro preguiçoso.
Na cabeça das estacas de uma cerca feita como deu, cerca esta que deveria servir para dividir a casa dos animais está fincado uma carcaça seca de cabeça de boi, alguns chifres e por perto um baita cruzeiro - servem para não entrar azar (mal-olhado) ou então que a sorte saia daquele sombrio lugar.
- Sooorte!!! Que sorte?
- Num é sorte não!
Trata-se de crendices de feiticeiro, tradição herdada dos-avô, coisas dos antigos - superstição para assarapantar.
Alí deve ter cabeça de burro enterrada, coisa feita! - Quem passa na estrada, pensa.
- Imaginar o pernoitar ali causa arrepios.
O ambiente lúgubre ao redor da tapera é movimentado e marcado pelos piseiros dos animais que se afocinham e dos irmãos solteirões que estão sempre zanzando por ali; Aquele lugar é desprovido de uma ação sistemática e direcionada do Estado, ali não tem água tratada, energia elétrica chegou de pouco e quase não tem utilidade, a perrenguice quando quase sempre aparece é curada com raízes e ervas colhidas nas proximidades do rancho numa hortinha no fundo da casa. - Vida difícil!!!
O interior da morada não é muito diferente do fora, mas eles fazem o que podem; Já na barra da parede bem na entradinha da sala a coleção de chapéu de couro enfeita a casinha e chama atenção pelo cuidado, são relíquias para ser usado em datas especiais - tapam o coco de Docha do castigo fustigante do sol do sertão; - Ele põe somente quando vai à rua comprar sal e querose ou fazer mandado;
Chapéu ganhado tem que ser bem guardado, disso ele sabe bem, são heranças deixadas por aqueles que já foram - dos avós - e eles tem prazer em deixar a vista pra todos verem, mas tem ciúmes, não dão nem emprestam... - Vender? - De jeito nenhum!
- Os cabrestos e arreamentos dependurados nos cantos também como os chapeuzinhos servem como adorno - não é falta de espaço para organização dos utensílios, e sim de recursos materiais além da pouca e limitada imaginação dos irmãos - algo que um toque feminino facilmente ajudaria.
Purriba do banquinho, por di-perto do fogão de plantidão os bár -d’agua improvisado revela prudência, preocupação com o delongar da noite que é bem espichada por ali; Em suas concepções entendem: É melhor prevenir! Trata-se de uma reserva necessária e serve para lavar os pés, o pescoço, fazer um café, chá de macaé, põe no pote pra beber um gole - e assim, matutam os sertanejos.
Isolados, sem muita opção pra diversão ou bater uma prosa os irmãos tem que empoleirar cedo, quase que de pareio com as galinhas - porém, Docha antes de dormir tem costume de comer uma cabeça de bode cozida, e é ele mesmo que prepara o trem - também está gordo igual um capado erado, parrudo e com a cacundinha larguinha mesmo.
Sempre calado, Docha não gosta de puxar o papo mas ispia paciencioso, observa, viaja no além... Docha deve ter bicho no pé coçando, bicho graúdo, batatão debaixo da unha - “carcanhar” rachado esconde bicho!
Ele vigia com zói cumprido bicho de pé, mas agora aquele que está na panela de ferro a cozinhar. - É janta. Bão de bóia, ele não erra hora! De butuca, escorado no portal da cozinha fica com as mãos na barriga roliça que a essas alturas ronca fundo.
No varalzinho tem toicinho e lingüiça caseira defumando; O calor da fumaçinha que sobe faz gordurinha descer e pingar na brasa aí sobe di-novo e cheira, se não fosse a fumacinha que levanta do “brasile” eu ia até falar que estava tudo mofando - pois é resto ainda de um capadinho que morreu nove meses atrás ali no terreiro ensabucado vítima duma faca amolada que esteve nas mãos sanguinárias de Docha numa manhã de sexta-feira - ele não pensou duas vezes e o- enlatou pra ir comendo aos pouquinhos. Docha é dado à fartura, gosta de porco na lata e aprecia um torresminho com gordurinha untando a cabeça dedo; Ali naquele fogão mal-arrumado sempre tem fogo atiçado durante o correr do dia e a qualquer hora está pronto o guisado pra quem quiser degustar.
O rádio a pilha é a melhor companhia dos irmãos solitários e passa a tarde toda ligado comendo da bage; Docha escuta atento as notícias e os caipira, ao mesmo tempo, ainda que sem querer, ouve também o tagarelar contínuo de Militão que às-vezes dentro do casebre ou nos arredores não cala sua matraca - Militão conversa sozinho prus cantos - Docha resmunga e observa pouco fala; Num riso demente no abrir da boquinha de bagre surge a pontinha do único dente, tão solitário quanto ele, aparentemente sem qualquer utilidade a não ser pra descascar banana-ouro madura, e olhe -lá!!! Enquanto isso, Militão está com a boca cheia de dente, tudo certinho, dá risada com a boca escancarada; - Seria Militão mais zeloso, cuidadoso? Não. Aquilo é dente feito, dentadura mesmo.
Militão brinca, ri, dá risadas esparramadas, parece fanfarrão e malicioso ao mandar a visitante que passeia pelo terreiro comer pimenta: “Pãe na boca pãe, pãe na boca e mastiga procê-vê”!!! Astuciosamente da gargalhadas. – (Trata-se de pimenta malagueta, pimenta brava, que arde ao ser colocada na boca).
- Debruçado na cerca, Militão ao lembrar de sua avó Alexandrina amolece o coração e muda seu batido de imediato, agora tristonho o semblante fica desfigurado parece sentir saudades e estar a chorar por dentro clamando por eles, seus olhos entristecidos brilha, sua mente percorre num galope veloz os caminhos do passado – no vazio viaja.
- “Ês chegô aqui há mais de 100 ano e já faiz 20 ano que vó -Lexandrina morreu!” - afirma ele, e continua: “Ouvi dizê que meu nome é por causa do meu avô que tamém chamava Militão.”
- Com os olhos lacrimejados a lembrança gera saudade e parece lhe provocar profunda dor!
Sobre as festas tradicionais – ainda com ar de aborrecimento e aparentando ressentimentos, responde Militão:
“Aqui já teve muitos festeiros, mais acabô tudo!
Os que restava passô tudo pra religião crente - acabô! - os forró que tem hoje é de pula-pula.”
Naquele lugar literalmente não existe amparo, afago, carinho e calor humano, a vaidade moderna que definem a moda nas passarelas das grandes cidades passa despercebida, ou melhor nem passa, o único sinal de tecnologia é mesmo o rádio, este sim, naquele cantinho do céu dos irmãos traz notícias do mundão de meu deus e vale ouro - mundo desconhecido, mas compreendido como grande, gigante, no imaginário grandão de vera.
Um laço harmônico natural da vida “dita” o convívio obrigatório e de reciprocidade entre eles, cuidando assim, que permaneçam unidos pelo destino ajudando um ao outro até que a morte os separe.