O deserto e as geleiras azuis

Escondidos na curvatura meridional da terra, os desafios e as contradições da Patagônia. Superfície coberta de vegetação de estepe, moitas rasteiras espinhentas e pequenos arbustos. A vastidão da paisagem decorada por variações esquisitas da folhagem verde e acinzentada, combinação perfeita com a cor azul turquesa quase iluminada das lagoas e a brancura dos picos distantes. Estrada de asfalto com curvas fechadas, cercas demarcando grandes estâncias e grupos de casas minúsculas, justapondo-se com a beleza inóspita do deserto diante de nós. Condor desvendando os mistérios da terra, planando sem pressa no céu azul. Éramos intrusos em uma pradaria magistralmente despojada de seres humanos e aconchegos da vida moderna

Prólogo da sangrenta ocupação e colonização do deserto, extinguindo, submetendo ou dispersando o Povo Originário. Crenças milenares não foram suficientemente potentes ou persuasivas para protegê-los dos preconceitos e da ganância dos novos donos da terra. Darwinismo econômico europeu, escrevendo o epílogo de uma história milenar. Revolução tecnológica fomentada pela demanda de carne e lã no mercado internacional. Refúgio para todos: colonizadores, marginais, santos ou bêbados, sempre escapando dos seus passados, transformando seus ancestrais em hóspedes incômodos da geografia gigantesca, conhecida como a terra do fim do mundo.

Pilotado cautelosamente, barco catamarã navega o Canal dos Témpanos do Lago Argentino em direção ao glaciar “Perito Moreno”, a maior geleira do Parque Nacional dos Glaciares. Vista espetacular formada por camadas sucessivas de neve compactada, descendo da Cordilheira dos Andes.

Contemplávamos em silêncio a imensa parede de gelo, uma cortina branca azulada, guardiã de nuances e mistérios, espalhando-se relevo acima entre as montanhas da cordilheira. Estalos. Resmungos, rugidos e uivos anunciam repentinamente o começo da performance. Fissuras na superfície da geleira, seguidas do desprendimento de grandes blocos. Icebergs flutuando em águas leitosas, azul-turquesa e brilhantes, iniciando suas viagens pelo Lago Argentino, um ritual milenar.

Palmarí H de Lucena é membro de União Brasileira de Escritores

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