MESA DE BAR
Por Carlos Sena


 
Um sábado xoxo em Brasília. Um telefonema de uma amiga me anima: “estou aqui no Armazém do Ferreira, tomando uma cervejinha gelada, ouvindo um pagode gostoso e saboreando uma feijoada”. Vem pra cá! Eu fiquei meio lá e meio cá. Pelo “meio lá”, lá fui. Afinal, refleti, o que se pode fazer nesta cidade onde a solidão fez dela sua mais perfeita tradução? Fui. E gostei do que vi: gente bonita e samba gostoso (embora muito alto impedindo de conversarmos), espaço bom e meio familial. Da feijoada não experimentei. Diabético, escravo da repressão que a consciência impõe contive-me a duras penas, mas não resisti a um torresminho que estava na mesa, debochando da minha cara. Mas o principal estava ali: gente. Gente descontraída, aposentada, feliz com a vida e dela tirando o que ela não tem de melhor pra dar, mas pra permitir aos corajosos do viver. As amigas da minha amiga a quem chamo de TIA são simplesmente elas. Encontrar pessoas que sejam elas por aqui é difícil mesmo, salvo engano.
Entre um chope e outro, de repente todos estavam numa chopada ligth. Eu não. Fiquei bebendo samba com H2O – aquela bebidinha sem futuro que é melhor do que a coca zero! Bebendo gente, evidentemente, numa cidade que nos permite muito pouco esses prazeres etílico/gentílicos. Lembrei de Gonzaguinha: “mesa de bar é onde se toma um porre de liberdade”. Isso mesmo: liberdade foi o que começamos a sentir alhures, mesmo eu sem beber, mas as amigas empolgada na chopada... No meio de uma dessas prosas misturadas com outras conversas paralelas, percebi que rolava “no ar” um assunto que me toca: coisas de famílias quando ultrapassam o socialmente estabelecido. Pois bem: uma das recentes amigas começou a falar do câncer da sua filha. – Da sua filha? Sim, me respondeu. – Mas ela tá bem? – Agora sim, está ótima! – Por que agora sim? – Porque ela se casou e seu casamento foi a coisa mais linda do mundo! No meu canto quieto fiquei sem entender aquela ilação entre câncer e casamento, mas insisti, como bom “analista de Bagé que sou”... – Mas por que o casamento da sua filha foi tão importante assim ao ponto de você ficar com os olhos cheios de lágrimas? – Porque o sonho dela era se casar com sua namorada! Foi ela, sua companheira, quem mais ajudou para que ela saísse da fase crítica do câncer, completou a mãe. Seu casamento, continuou, foi aglutinador de toda família, inclusive do meu ex-marido – machão inveterado que se rendeu às evidência do amor da nossa filha pela sua namorada. A minha grande surpresa, continuou falando a mãe, foi quando o pai dela, no dia do casamento, chegou perto da namorada da minha filha e, abraçando-a disse: “olha, eu gosto tanto de mulher que até meu genro é mulher”...
Passada a emoção desse “desabafo” feliz de uma mãe, então a conversa rolou sem muitos cuidados e explicações. Mas eu não deixei por menos: afinal, suas outras duas filhas estão casadas? Foram casadas. As duas se separaram e hoje a minha única filha que mantém o casamento é essa que se casou com sua namorada e hoje companheira legal. Falou detalhes do casamento com efeito legal, da entrada na igreja e tudo mais que teve por direito. Confesso que me emocionei, mesmo sendo “macaco velho” e conhecedor de histórias semelhantes e até mais complexas do que essa. Mas a emoção veio da mãe. Feliz mãe. Ela me dizia que queria filhos pra ser felizes e que seus melhores amigos são gays... Lá para as tantas horas da tarde, pedimos a conta. Dividimos pelo que cada um consumiu – mulher moderna é assim. Nada de alguém pagar a conta sozinho, principalmente se não havia jogo de sedução posto na mesa, mas só amizade. Por perto da nossa mesa tinha um povo meio feio e uns homens já com prazo de validade vencido, mas isso era detalhe de somenos importância. Os bonitos e bonitas estavam todos acompanhados, que pena!
Conta paga, Tia que era a única que estava de carro deixou uma das amigas em sua casa. A outra foi comigo até a Rodoviária, pois eu ainda tinha algumas coisas a fazer, inclusive cortar a juba e a outra sua amiga ia ver sua mãe no bairro do Guará. No trajeto fiquei pensando como é bom beber gente e confirmei na prática que, de fato, “mesa de bar é onde se toma um porre de liberdade”... Agora, escrevendo estas bem traçadas linhas, fiquei com vontade de ficar sabendo das duas amigas que se casaram. Sei que o câncer da filha da minha amiga está praticamente vencido, mas eu queria sabê-las e, quem sabe, com sua mãe e sogra, fazermos um outro sábado, preferencialmente no Armazém do Ferreira, em Brasília, cidade onde a solidão não reclama já que vive de barriga cheia...