Sobre a solidão

Usava seu chapéu e, por mais que desconhecesse, ainda tinha todo seu charme. Nos pés levava sempre seu sapato social. Os resultados dos exames não estavam tão bons, passou a tarde toda pensando nisso. Catarata, osteoporose, perda de audição e memória, problemas de digestão e outras coisas que não conseguia nem mais enumerar. Havia sentado no banco da praça sozinho pra poder olhar o relógio e ver minuto a minuto passar. Não tinha mais pressa alguma, mas tinha medo. Nunca tivera tanto medo da morte como agora. No auge dos seus 86 anos estava pela primeira vez com medo, e se pegou rindo disso. Já havia superado suas expectativas por aqui, já havia passado por muitos problemas e vencido todos. Já havia perdido muitos dos que amava e agora andava se sentindo só. Seus filhos estavam sempre muito apressados, e seus netos sempre vidrados na frente do computador ou videogames. Pensou que se pudesse abortar algo do mundo, seriam essas tecnologias interativas.. tinha certeza de que eram elas que faziam seus netos esquecerem de pedir a benção ou então visitá-lo vez ou outra. Gostava de sair e sentar naquele mesmo banco de sempre. Dali tinha uma visão ampla da avenida mais movimentada da cidade. Não deixava de ir a igreja nos domingos e sempre pedia pela alma de sua falecida e tão amada esposa. Mesmo depois de tantos anos não se conformava por ter perdido aquilo que costumava chamar de "sorte grande". Sua mulher havia sido sim o grande amor de sua vida, e quando pensava nela com essa doce nostalgia, esboçava sem perceber o maior dos sorrisos no rosto. Queria estar ali, ladeado por algum de seus netos pra contar sobre suas histórias de muitos anos atrás. Começava a escurecer, lembrou-se do remédio das 6. Havia uma semana que não se lembrava de tomá-lo, pensou se aquilo era um grande problema, mas logo deu de ombros. Já não tinha mais tempo para essas preocupações. Continuou ali por mais alguns minutos reparando em como essa "outra geração" era apressada. Se sentiu na contramão do mundo sabendo que podia ficar sentado ali contando minuto por minuto sem ter que sair correndo para pegar a próxima condução. Foi embora quando já era noite, acompanhado por sua bengala, no seu passo mais lento.

Raquel Salgado
Enviado por Raquel Salgado em 22/02/2013
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