O Amor Sobre Brasas
O sangue não tardou a coalhar no asfalto. Nenhuma marca de freio ficou no negrume, sinal que não houve tentativa de parar. Sob o calor fúnebre, a morte pediu passagem; deixou sua marca na inocência. No rosto enrugado, a tristeza da separação lançava lágrimas na face de sofrimentos.
Como num ritual fúnebre, o caixote foi fechado. Da minha porta, segui o cortejo no caminho de volta, passaria sobre as marcas ensanguetadas – o sangue no asfalto já ressequido; sinal de violência na passarela do progresso. Depois da estrada, as águas escuras do rio, dali ele retirava o sustento da vida, para a pinga e a pouca comida da companheira, vendia o restante para transeuntes. Todo dia, o mesmo caminho: rotina da sobrevivência!
Naquele dia, os peixes iriam esperar. Olhar cabisbaixo, querendo esconder a tristeza; agora, maior, causada pela solidão. O caixote debaixo do braço, o “corote” de pinga na outra mão, caixa de fósforos no bolso, a rotina quebrada pela dor. Dor da separação! Não a dor dos apaixonados que se contorcem na noite, convulsionados pelos desejos passageiros da carne; estes são momentos de desespero superados com novos beijos, novas maquiagens, novas roupagens, muitas vezes, para além do nada. Aquela era dor de amor: só existe onde não há poder, onde a vivência é correspondida sem cobrança, sem o ciúme doentio, sem os seres se “achando” donos de outras almas.
“Eu vi quem foi... Foi aquele carrão lá da fazenda, aquele que tem um retrato de um boi na porta.” De que vale o testemunho dos infelizes? O poder manobra vidas, corrompe mentes, não se dobra aos sentimentos da miséria; apenas os usa para seus colóquios e interesses pessoais. Cabe ao “homem de cortiça” cumprir sua sorte, terminar seu círculo de sobrevivência, gozar os instantes ébrios e temer a ditadura dos Deuses.
O cortejo solitário seguia silencioso. A “piriguete” passou indiferente. Novo visual da rotina pedindo passagem, cabelos alisados na “chapinha”, roupas apertadas, mostrando contornos e celulites; preocupação com o equilíbrio da beleza. O “bad-boy”, com seu cabelo mal cortado, desfilava sob um sol democrático, cabeleira estranha, cérebro sem entranhas; miscigenação aloirada, cabelos desbotados sob a influência da mídia. Ninguém notou a dor que caminhava cabisbaixa, não fazia parte de suas rotinas. “Apenas um velho cansado carregando um caixote.”
Uma espiadela no rosto imóvel, com palidez de morte, um último gole, a fagulha começou a se transformar em labaredas. O odor de carne chamuscada tomou conta do ar, daqui um pouco, tudo seriam brasas. Ali perto, a rotina das estradas continuava na sua intolerância, carregando o progresso, matando inocentes. A morte sobe rodas, dupla mortalidade: transporte para as “bugigangas" que praticam o genocídio de mentes pelo consumo sobre as borrachas que massacram inocentes nas estradas.
Por acaso, guardei o último pedido daquele velho cansado, sobrevivente dos últimos remanescentes que ainda se preocupam com a Mãe Terra!
- “Moço, sei o que o Senhor gosta de criar cachorro, quando tiver uma cachorrinha dê pra mim... A minha, uma “carreta” passou por cima!
Não respondi, apenas balancei a cabeça e segui querendo acreditar que ainda há esperança para um sentimento chamado “Amor”. Mesmo que não seja entre homens!