O Poço
O mundo da criança tem seus próprios fantasmas, seus próprios medos. Originam-se ora de perigos reais, ora de manobra dos adultos para efeito de controle, às vezes até justificáveis. Alguns desses medos permanecem até mais tarde, outros somem, outros novos aparecem.
Um dos medos da minha infância, meu e de meus amigos, era o poço. Não era história inventada pelos pais ou coisa de nossa imaginação, era um pavor real, baseado em fatos. O poço. Sim, ele era tão real que poderia até ser um personagem de história. Fazia coisas crueis, era mau, era assassino.
Não havia água encanada e as pessoas precisavam beber, precisavam se lavar, quem não precisa? A solução era escavar, escavar até encontrar o líquido mais do que precioso. Para quem morava nas partes baixas, era fácil. Dois ou três metros de escavação e a água jorrava lá no fundo, acumulava-se na base. Com um balde, corda, carretel e manivela, ela vinha fresquinha para cima. Para nós que morávamos lá no alto, a história era outra. Os coitados começavam a escavar, dias, semanas e nada. A terra era levada, balde a balde, para cima, 20, 25 metros.
Era desses poços bem fundos que vinham as tristes histórias de trabalhadores que ficavam soterrados. Não nos contavam os detalhes, éramos muito pequenos, mas vez ou outra, víamos mulheres chorando, falando baixinho, o pavor na face. O marido, um irmão, um conhecido, alguém havia desaparecido.Muitas vezes, mais de um.
Todos temíamos os poços. Era um dos nossos terrores. Depois veio a água encanada e esse medo foi embora. Ficaram outros medos, talvez piores, algum sempre fica.Talvez precisemos do medo para termos cuidado, para termos coragem.Quando nos tornamos adultos, às vezes precisamos estar no fundo para conseguir ver a luz que está lá em cima. Só assim que alguns conseguem vê-la...