DOR DE BARRIGA E DOR DE DENTE
O ano era 2004. Eu morava numa cidade de interior, Maracajá, cerca de vinte mil habitantes. Era uma cidade pequena. Meu pai tinha morrido há um mês. Me deixou órfão eu com 19 anos.
Amanheceu o dia, era um feriado de 07 de setembro. Acordei, lavei o rosto e fui comer: granola com leite. Na primeira colherada fui mastigar, tinha um grão tão duro que furou um dente fazendo cair a obturação. Passei o dia jogando vídeo game. Claro, como de costume, sempre uma caixinha de chocolate ao lado da TV, fase por fase eu comia um chocolate mastigando, mesmo assim, com um dente furado.
A noite estávamos em Marizete Lanches. Eu comia um x-tudo e tomava uma vitamina de abacate. O sanduíche estava insosso e a vitamina com um gostinho de azedo no final. Terminei o lanche e tomei uma água com gás. Em frente à Marizete tinha um jogo de dominó que uns coroas conhecidos jogavam, esperei um certo tempo até chegar minha vez de jogar, mais ou menos uns 40 minutos. Assim que me sento para jogar dá aquela pontada na barriga e sinto que melaria a cueca. Rapidamente peço pra alguém ocupar meu lugar e corro para minha – que era bem próximo à Marizete Lanches e ao jogo de dominó. Assim que chego em casa, só deu tempo de arriar as calças e entrar no banheiro. Quando comecei o processo de defecação, a droga do dente furado começa a doer também. Foi a noite toda assim: dor de barriga e dor de dente.
Minha mãe era advogada, e meio mão de vaca. Acordo, sexta –feira, geladeira vazia, mas graças a deus sem mais um pingo de dor de barriga, porém com o dente lascando, doía mais que um parto normal sem anestesia, e tinha um bilhete na porta da geladeira da minha mãe. dizia assim: “filho, tenho três audiências hoje na capital, ao terminar vou ficar o fim de semana por lá na casa da sua tia Marcicléia. Só volto segunda pela manhã. Deixei 100 reais. 50 você compra umas frutas, hoje que é dia de feira no mercado, pra tomar café e jantar nos dias em que estarei fora. 10 reais você tira para almoçar hoje, amanhã e depois, 30 de almoço. Ainda vai lhe sobrar 20 pra você ir tomar um sorvete ou lanchar com sua namorada. Beijos. Te amo... Ah, e Claudineide vem amanhã fazer a faxina. Nada de se adiantar com ela, viu? Beijo de novo e te amo de novo, filho”.
Só um detalhe, era sexta-feira e eu acordei com uma vontade danada de farrear, a cidade estava cheia, lotada por conta do feriado prolongado. Mas só era “100 conto”. Não dava pra nada. E assim que termino de ler, amassar e jogar o bilhetinho no lixo, Tião do bar toca a campainha me cobrando “50 conto” que eu o devia do fim de semana anterior. Paguei. Fiquei só com “50” pra ir ao mercado, fazer uma feirinha, almoçar três dias e por cima, ainda tomar um sorvete com Cris, minha namorada. Ferrou! E o dente doendo. Muito.
Fui ao mercado, já não aguentava mais a dor de dente, estava começando a inchar. Vi o anúncio numa F-4000 carregada de mamão. O anuncio dizia: “pago 20 real pra quem arriá uma carrada de mamão papaia”. Nem contei conversa, cheguei em Bosco, dono do carro e disse:
- Eu descarrego, Bosco.
-Você, Manel, filho de “adevogada”? Ele respondeu.
- Filho dessa coisa aí também tem dor de dente, ‘ômi’ de Deus! Eu lhe disse
Descarreguei todo o carro. Perguntei se tinha outro. Ele disse que tinha. Mas era de jaca. Fui e descarreguei outro. Mas pechinchei e pelas jacas ele me deu 25. Foi terminando de descarregar e ele me pagando os “45 conto”. Não fiz nem a feirinha. Corri direto para o consultório de Dr. Expedito Laurentino. Obturei o dente. ”30 conto”. Sobrou 60. O dente parou de doer. Assim que saio do consultório recebo uma SMS da minha namorada dizendo: “amor, vou pra Maracaxeta, pai quer passar o fim de semana lá na fazenda. Beijo, te amo”. “tudo bem. Beijos, te amo também minha pimpolheta... respondi”. Fui direto ao mercadinho de seu Barroso e comprei mais “30 conto” todinho de biscoito recheado com nissin miojo. Dava pra comer no fim de semana.
E com os outros 30 que sobrou? Comprei dois jogos novos - um de guerra e outro de pancadaria - e um filme pornô. Passei o fim de semana todo jogando game querendo zerar os joguinhos e vendo filme de putaria. Coisa de "menino novo" como diria minha avó... Isso, um monte de amigo meu lá no interior, festas e mais festas... Mas “lugar de liso é em casa”, já dizia dona Têta, a dona do cabaré que, volta e meia, a gente ia lá pra tomar uma e pegar nos peitinhos das quengas dela.
Bom, pelo menos trabalhei uma vez na vida. Pura necessidade. Tinha perdido pra sempre meu pai. E, minha mãe, perdi por alguns dias, vi que a coisa é difícil. E vi porque minha mãe é meio mão de vaca. Ganhar dinheiro dá trabalho. E como dá. Nunca tinha tomado tanta “mamãozada” e “jacada” nas costas.
Uma coisa é certa, só a dor cria, ensina e educa.
Acordei na segunda-feira, puto e estressado com a solidão. Bonequinhos virtuais não fazem companhia a seu ninguém.
Solidão não foi uma coisa feita para jovens. Não mesmo.
Pois é, acordei puto na segunda-feira, joguei meu vídeo game fora, não era dos mais modernos, era um “Playstation 1”, fui e me matriculei num curso técnico em elétrica. Nada de esperar mais por mainha.
Me lembrei do Dr. Muller:
Certa vez "O dr. Müller tratando um hippie com depressão. A primeira sessão durou menos de um minuto:
-- Corte o cabelo e tome banho ou não me apareça mais aqui.
Segunda sessão:
-- Volte na semana que vem de terno e gravata.
Terceira Sessão:
-- Não me volte aqui se não tiver arrumado um emprego.
Na quarta sessão só o paciente falou:
-- Doutor, nunca estive tão feliz".
Perfeito!
Passa-se uma semana, outra segunda-feira. Primeiro dia de aula do ano. Chego bem cedo e empolgado. Cabelo ainda molhado. O professor faltou. Estava bêbado.
Bem que a educação também poderia criar, ensinar e educar... Pode ter certeza, ignorância é pior que dor de dente. Esse professor merecia uma cadeia. E eu merecia meu “Playstation 1” de volta. Droga!
Não me dei por satisfeito. Acordei na terça-feira, pus uma camisa social, gravata, sapatos e fui a procura de emprego. Trabalhar também era preciso. E graças a Deus mais nunca encontrei um carrada de mamão na minha frente. Sofri a beça. Deus abençoe os cabeceiros. Passou quarta, quinta, sexta-feira... Chega domingo: fui a missa e rezei pelas alma e corpos dos "fretistas" de carro de mão e "cabeceiros" carregadores de mamão e jaca. Acordei na outra segunda-feira de alma lavada. Mais nunca fui o mesmo homem.
Ora, nem Toddynho eu tomo mais. Amém!