PIPAS

Com frequência ouvimos nos noticiários que ciclistas, motociclistas e até transeuntes (não com tanta frequência) morrem por causa de uma linha de empinar pipa guarnecida com cerol. Como pode, uma brincadeira tão prazerosa para todas as idades, ser transformada em uma arma bandida responsável por várias tragédias. Quantos garotos também já se acidentaram, e até fatalmente, por terem caído de uma laje, neste caso independentemente de usar cerol ou não, mas sim por falta de espaço. Onde soltar pipa numa cidade grande? Eis a questão. Lamentavelmente não há mais espaço nem áreas como campos de futebol de várzea.

O tempo passou e muita coisa mudou. Entrei no túnel do tempo e voltei sessenta anos. Não me lembro de ter ocorrido algum acidente provocado por cerol. Ele existia artesanalmente, mas era muito arriscado fazê-lo, pois o risco era enorme de se ferir, porque moer vidro no esmagamento não era tão simples. Hoje está industrializado, creio que de forma clandestina, mas hoje o cerol é comprado. Em assim sendo, alguém o está produzindo. Esses produtores deveriam ser punidos com prisão pela conivência com os usuários de cerol.

Então voltando aos meus tempos de criança, a gente ficava ansiosa para que houvesse um vento um pouco forte. A garotada toda seguia para a várzea que começava na Rua Palmércio de Rezende (Butantã) e lá as pipas eram soltas, sempre as mais briguentas (maranhão, pelo seu formato, era a mais usada). O jogo era roubar a pipa de outrem, laçando a linha ou furando com uma cabeçada. Para isso é necessário um jogo de punho, como certas tacadas de jogo de bilhar.

Malandragem também havia. Sempre aparecia um “estraga prazer” que querendo ver se a pipa puxava com força, colocava a mão na linha e esfregava um dente de alho que a enfraquecia rapidamente e ela se rompia naquele ponto e adeus pipa. Se alguém usasse cerol levava cachuletadas de toda a garotada. (cachuleta = soco no ombro).

Bons tempos! Nós mesmos fazíamos nossas pipas (eram chamadas também de papagaio e quadrado). Bastava um pedaço de bambu, duas ou três varetas e lá saiam os modelos águia, caixa, peixe, barrilete, bola (4 varetas que formavam um octógono), etc. Com a pipa pronta bem simétrica, na hora de soltá-la tudo tinha que estar em equilíbrio (rabiola e estirante completavam a peça) de acordo com velocidade do vento. Tudo de forma empírica, pois não conhecíamos nada de Física. Infelizmente se viesse uma garoa, a brincadeira acabava. As pipas eram feitas de papel de seda.

Cresci gostando de soltar pipas e, mesmo adulto, recém- casado, recebi a visita de minha cunhada com o filho Alex (garoto pipeiro) e então, para passar o tempo, fizemos uma pipa. Como não tínhamos papel de seda, usamos saco de lixo de cor preta e o modelo foi o águia (neste caso, estava mais para urubu) e surpreendentemente quando a soltamos ela foi atacada, insistentemente, por um bando de pequenos pássaros. Grande exemplo de companheirismo em defesa da espécie.

Acontecimento igual a esse eu já tinha visto, mas se tratava de um gavião que é um verdadeiro predador de pássaros pequenos quando voam isolados.

Nunca parei de soltar pipas, principalmente, na praia já em idade adulta. Cronologicamente não sei dizer quando ocorreu. Nunca soltei pipa enrolando linha numa latinha de cerveja ou lata de óleo, eu tinha uma “carretilha”. Então sentado, tomando sol, dei linha à pipa. O vento soprava para o mar e o modelo era um peixe, tudo a ver, sol, mar e peixe. Veio uma lufada que fazia a pipa dar cabeçadas que vinha até próxima da água e o jeito nessa situação aqui é dar mais linha para que ela fosse mais para o alto. E nesses movimentos de puxa, enrola e solta como se estivesse pescando atraiu uma pequena multidão que ao invés de olhar para cima, olhava para o mar à procura de onde estava o peixe. Quando houve uma calmaria, enrolei a linha e foi uma decepção para os curiosos que estavam esperando um peixe de verdade e eis que vem um peixe de bambu e papel. Não foi com intuito de fazer uma pegadinha. Foi muita risada, então pensei logo em empinar pipa com uma vara de pescar, mas seria necessário um molinete que coubesse uns quinhentos metros de linha, material muito caro na época.

Sempre gostei de empinar “papagaios” usando carretilha, uma “maquininha” fácil de fazer, a pipa não cai nem que o vento pare de soprar, basta girar a manivela rapidamente que forma o arrasto.

Estava passando uns dias na praia fora de temporada, nada para fazer, então resolvi soltar uma pipa que se encontrava no porta-malas do carro junto com a carretilha. Comprei quinhentos metros de linha de pescar numero 17, substituí a linha da carretilha e na praia (sem plateia) fui dando linha. Apesar da grande barriga que a linha formou, o “bicho” foi alto e pensei: “De agora em diante, passarei a soltar pipas com linha de nylon e venha o vento que vier que sei que não quebrará”. Enrolei a linha e guardei-a. Quando fui soltar novamente no dia seguinte a “maquininha” estava toda destruída. A linha, quando “esfriou”, exerceu quatro forças contrárias sobre a “bobina” quadrada em que estava enrolada, quebrando as ripas e eu perdi maquina e linha, pois esta ficou toda embaraçada. Aprendi que não se deve usar linha de nylon em carretilhas de pipeiro, salvo se a bobina for redonda, como nos molinetes.

Solicitei a meu irmão, Leonel, que me fizesse uma carretilha, pois ele possuía todas as ferramentas necessárias, inclusive serra de fita para os cortes simétricos e lixadeira elétrica para deixar bem lisos todos os pontos onde ia correr linha. Ficou uma maravilha!!! Então passei a soltar pipas maiores com cordonel.

Mais ou menos um ano depois recebemos a graça (eu e minha mulher) do nascimento de um filho e nós já morávamos no Rio de Janeiro. Quando ele já estava com uns dois anos para três anos, eu fiz uma pipa tipo peixe e fui à praia para soltá-la. Estava no aterro do Flamengo e então comecei a soltar, e, como o vento era forte, a pipa com linha curta movia-se rapidamente de um lado para o outro e meu filho se assustou e não quis mais saber de pipas. Um garoto de uns sete anos chegou para mim e disse:

- Tio, me deixa segurar essa pipa?

- Claro! Querido sobrinho!

Fiquei tão contente, pois há muito eu não era chamado de tio por uma criança, principalmente uma criança estranha. Nós sempre tivemos o costume de chamar, respeitosamente, as pessoas mais velhas de tio, tia, vô, vó, etc. Independentemente do parentesco. Como os tempos mudaram. Hoje esse tratamento é considerado pejorativo.

Comprei uma pipa de pano modelo águia de tamanho médio, pois eu estava praticando a soltura com cordonel. Num domingo à tarde, na Barra (Rio de Janeiro) eu soltava essa bela pipa com a carretilha, quando um garoto de mim se aproximou e olhava para a pipa com os olhos arregalados e virando seu olhar pra mim, disse:

- Que isso que o senhor tem na mão?

- É uma maquininha para não embaraçar a linha.

- Me deixa experimentar.

Entreguei a carretilha ao menino e assim que segurou, disse:

- Que teeeeeeeeesão!!!!!!!!! Paiê, Paiê, eu quero um troço desses.

O pai se aproximou, olhou a peça. Eu tentei explicar para ele como era feita e me disse:

- Obrigado! Não há problemas, eu tenho fábrica de móveis.

O garoto não queria mais largar a pipa, até que eu disse que precisa ir embora.

Um dia vi um anúncio numa revista de uma pipa em forma de asa delta. O fornecedor era domiciliado em São Paulo. Mandei o anúncio para meu irmão e pedi para comprá-la assim que tivesse um tempo. Ele comprou e quando me foi visitar levou-me a pipa. Que tecnologia! As varetas eram encaixadas nas extremidades, o pano era sedoso e impermeável, a vareta central devia ter uns 60 cm, dava para soltar em dia de chuva fraca. Diverti-me por muito tempo com aquela pipa. Não me lembro de como ela acabou.

Amigos recantistas, se vocês souberem quem está fabricando cerol, faça uma denúncia pelo fone 181. (Disque denúncia em São Paulo. Veja o telefone em sua cidade). Não vamos consertar o mundo, mas vamos contribuir para que haja menos canalhas.

Santo Bronzato 21/02/2.013.

SANTO BRONZATO
Enviado por SANTO BRONZATO em 21/02/2013
Reeditado em 16/03/2013
Código do texto: T4152212
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