O homem é um menino

Achou que podia fazer. Nunca na vida tinha feito uma pipa antes, mas naquele dia algo por dentro lhe dissera que era simples, que era fácil. Tinha visto os irmãos mais velhos e os amigos dos irmãos fazerem e da curiosidade de olhar, surgira-lhe de repente, na manhazinha fria e de garoa fina de São Paulo a vontade de fazer. Mais que vontade: a certeza de que podia ser feito.

Não tinha instrumentos necessários ao artesanato de criança. Arranjou-se: gravetos e folhas velhas de jornal. Envergonhou-se sozinho pelo arranjo que fizera e quando pronta, aproveitou o frio da manhã, a solidão de não ter ninguém que saísse à rua em garoa a uma hora daquelas e experimentou o brinquedo. Voou. Não conteve o entusiasmo, e mesmo criança, uma espécie de consciência que parecia não ser sua dizia-lhe que realizara um grande feito. Sua primeira pipa saíra assim da mente, do nada. Ditada por uma vontade irresistível e a certeza absoluta que não fracassaria. A segunda veio mais fácil e ficou melhor. Sentiu-se rei regozijado e orgulhoso por descobrir que era bom em alguma coisa.

Com os anos tornou-se bom em fazer pipas e ninguém lhe ensinara o ofício. Definitivamente era rei, um papa, um lorde, um herói. Alguém para ser respeitado, copiado, consultado, para ter a opinião procurada.

Permeou toda sua vida esse instinto. Esse jeito de querer viver. De tomar a iniciativa. De querer fazer e terminar. Não só de imaginar sem realizar, começar e não chegar ao termo, não ver pronta e consubstanciada a vontade. Em 1980 não era importante ser assim, ter gênio, caráter competitivo, ou se era, não era público e difundido como hoje no ano 2009.

Do seu brinquedo ajudou a mãe vendendo pipas informalmente quando um ou outro amigo, vendo-lhe os papagaios coloridos e bem feitos roçando o vento, cortando os ares, queriam comprá-los. Sua experiência era reconhecida e comprada. Sentiu muito mais orgulho que antes quando pôde uma ou outra vez ajudar a mãe dando o dinheiro da pequena empresa. Era, sem dúvida, um bom fazedor de pipas. Respeitado, admirado, que tinha os trabalhos adquiridos com valor no mercado e com certa popularidade difundida.

Hoje não sente mais orgulho juvenil. Desconhece a era espacial. Não realiza mais sonhos, eles não saem mais de si. Proporcionam alegrias íntimas somente.

Vai andando na noite pura do seu pensamento, de terno solto e sapatos raros, chapéu oblíquo. Banzeiro sem medo na rua sua, na noite sua, os seus sonhos são só seus.

26/12/2009

Oromy
Enviado por Oromy em 17/02/2013
Reeditado em 17/02/2013
Código do texto: T4144448
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