... E o coronel tombou
Por: josafá Bonfim
O animal que momentos antes dera trabalho para o criado apanhá-lo na solta, agora gerava dificuldades para aceitar os arreios, não permitindo o encaixe do cabeção da rédea no seu focinho.
O coronel em trajes de viagem desce os degraus da casa grande e ele próprio se encarrega de equipar a sua burra de estimação, que para de escaramuçar, consentindo seu dono colocar os apetrechos.
Dona Sinhá, contemplativa, da janela adverte o marido. - Euclides, essa burra nunca antes fez esse tipo de coisa. Algum aviso ela tá dando. Homem desmancha essa viagem e deixa pra ir à cidade só amanhã. Impetuoso, sem dar ouvidos ao que a companheira dizia, termina de equipar o animal, salta sobre a sela, faz um leve aceno e pega a estrada para Ipixuna.
Na saída do povoado, topa com Chico Doca que se oferece para fazê-lo companhia. Agradece sem ao menos se deter para melhor atenção dar ao seu morador.
Euclides gostava de fazer suas viagens, sempre sozinho, no que era alertado do perigo que o hábito trazia, contudo, não se importava. Naquela ocasião não podia perder tempo, tinha encontro marcado com o prefeito Nonato Veloso, seu amigo particular, de quem era aliado político de extrema confiança. Nem à própria esposa dissera o que iria tratar com o prefeito. Mas não era só esse o objetivo da viagem, tinha também compromisso com representantes do comercio cerealista, sobre a venda de sua safra agrícola daquele ano.
Ao atravessar a baixada do Engenho, pequeno lugarejo à beira do caminho, resolve dar uma paradinha para trocar uma rápida ideia com o amigo Zé Ramos, mas não o encontra na casa de comercio. É recebido pelo caixeiro que lhe oferece um cafezinho acabado de ser feito. Ao despejar o liquido do bule num copo, este, trinca-se ao meio. O caixeiro apressa-se e providencia uma xícara, e desta feita, quando o visitante leva a bebida à boca, uma galinha que se aninhava , fora tangida de dentro do comercio pra fora, e no voo bate na xícara que desprende de sua mão, espatifando-se no chão.
Escaparam-lhe uns dois impropérios e antes do atendente providenciar outra vasilha, muda de gosto, pedindo a este, desta feita, uma dose de conhaque.
- Um conhaquezinho, Coronel... Não lembro já ter visto o senhor tomar antes.
- Não costumo, mesmo, mas o susto com essa galinha preta, me fez esfriar o sangue, e uma boa dose é bom pra esquentar. Assim dissera logo se despedindo e seguindo a viagem.
Ultrapassava a metade do percurso, quando se aproximava do Morro do Toari, a burra cisma, breca as passadas, ameaçando empacar. O coronel acunha o animal nas esporas e este apesar da relutância prossegue a cavalgada.
No cume do morro, a pouca distância, o cano de um rifle Winchester cal. 44, encoberto pelo matagal procura o melhor ângulo da silhueta do cavaleiro para deflagrar. Vai tentando enquadrar o alvo sobre a burra, que lentamente passa a poucos metros da alça de mira, que não dispara.
- O que foi que houve, cara. Eu pago o teu preço, te trago pra cá pra tu eliminar esse infame e tu deixa ele escapar livre. Me dá essa merda, no retorno dele eu mesmo faço o serviço, covarde.
- Calma, rapaz, eu não atirei porque não consegui enxergar ninguém em cima da burra. Eu juro que não consegui ver nada. Esse miserável tem o corpo fechado, só pode ter.
Era Zezico, filho do falecido Joaquim Inácio, morto covardemente há mais de dez anos na porta do comercio de Euclides, no povoado Seco, por um cunhado do coronel e o Zeca, seu filho. Na época, o órfão tinha nove anos, e perante a todos no velório, jurou que vingaria a morte do pai quando estivesse homem refeito.
Desde o assassinato do pai, fora embora do lugar com os irmãos menores e sua mãe. E desta feita, viera pra cumprir sua promessa. Teria chegado ao conhecimento do rapaz, morando em outro estado da federação, que o perverso coronel havia mandado localizá-lo, a fim de também eliminá-lo, por saber que este ainda alimentava o desejo de vingança pela morte de Joaquim, seu pai.
Não obstante Euclides ter protegido os assassinos, Zezico não tinha a certeza dele ter sido o próprio mandante da morte de seu genitor, mas admitia que eliminando o cabeça, toda a onda de mortandade chegaria ao fim.
Comprou a arma, vulgarmente conhecida por rifle “papo amarelo”, contratou um pistoleiro profissional para a empreitada, e antes de chegar a Ipixuna, passara na cidade de Bom Jardim, onde se consultou com uma preta velha vidente que após benzê-lo e proferir alguns ensinamentos, o entregou uma bala preparada no centro de umbanda, dizendo: Vá meu filho, faça seu serviço. Use quantas balas for preciso, mas a que vai derrubar o monstro é essa aqui: colocou o projétil embalado no papel de uma carteira de cigarros, nas mãos do “justiceiro”.
Provavelmente tenha recebido apoio de algum morador das redondezas, de onde era originário, contudo não foi possível isso ser confirmado. Sabe-se que juntamente com o comparsa, alojara-se numa moita fechada debaixo do pé de toari, (arvore secular), que dava nome a um morro incrustado no leito da estrada que interligava o povoado Seco à cidade de Ipixuna. E naquele local, há pelo menos quatro ou cinco dias, aguardavam a passagem do alvo pretendido. Os alimentos dos quais se serviram, foram: farinha, biscoito e sardinha em lata. Para as necessidades, usavam uma cabaça como reservatório de água e a dormida era feita em redes. Incrível, mesmo com os dias de permanência, parece não ter deixado transparecer qualquer suspeita de suas presenças naquele local.
Euclides Tavares de Sousa, originário do Ceará, com menos de 60 anos de idade e uma prole de quatorze filhos, era comerciante e um grande proprietário de terras. Seu patrimônio cobria uma imensa região voltada para a criação de gado e a agricultura, com grande produção de grãos: arroz, feijão e milho. O temivel coronel, como tratavam-no, era Homem criterioso, trabalhador e gostava de honrar seus compromissos, mas ninguém o desapontava, nem ousava contrariar sua vontade. Um “exército” de homens vivia às suas expensas e ordens, pronto para qualquer missão. A região do Seco era clamorosamente afamada pelos inúmeros assassinatos que ocorriam e ficavam impunes. E essa impunidade era atribuída ao seu proprietário, que por ser mandatário do lugar, não tomava qualquer providencia quanto aos crimes e ainda era acusado de acobertar os assassinos, quando não, ele mesmo era quem determinava a execução de alguns desafetos. Tudo ali era resolvido à bala, perante o consentimento ou determinação do seu mandatário maior.
O destacamento policial só se deslocava para a região, quando solicitado por Euclides e somente sob a ordenança deste poderia executar prisões ou apreensões. O prefeito, de postura arbitrária e adepto do mandonismo, lhe dava carta branca para agir. Assim viviam, entre o compadrio desregrado e a troca de favores escusos, numa temática própria da época. Em certas situações embaraçosas envolvendo o prefeito e seus adversários, o compadre mandava seus homens para prestar apoio irrestrito ao politico. Por estas e outras façanhas, o mandatário era tratado por Coronel.
As sombras da tarde despencavam desde o talhe das palmeiras, espraiando-se no solo coberto por pastagem nativa. O silencio sepulcral, era interrompido pelas ondas de vento que buliam a folhagem do babaçu nas encostas de serras que circundavam a região montanhosa. Ouve-se ao longe o tropel de casco de um animal solitário, que vem aos poucos se aproximando. Deram-se alguns minutos... Sobre o Morro do Toari, quando o cavaleiro eleva o braço direito à testa, para quebrar o reflexo do sol sobre suas vistas... de repente, um estampido seco, um único apenas; ecoou entre morros e colinas, resplandecendo em toda região. O animal passa em abalado galope, lá mais à frente, o cavaleiro desaba da sela se estendendo como um fardo ao chão. A montaria segue desembestada no ruma de casa, dando coices ao vento, livre de seu condutor.
Os tocaieros correram para se certificarem da missão, mas antes de chegarem ao corpo abatido, ouviram converseiros de pessoas que se aproximavam para verificar o acontecimento. Desistiram, tratando o quanto antes, de deixar o local da cena, pela rota de fuga pré-planejada.
Os primeiros a acudir, foram moradores próximos ao local que se encontravam trabalhando em plantio de feijão nas roças da beira do caminho. Trataram de virar o corpo que se encontrava debruço, e não acreditaram no que acabavam de ver.
- Coroné, coroné, é o senhor coroné. Meu Deus que que aconteceu com o senhor, moço – indaga o primeiro roceiro a chegar. Levaram-no às pressas para a varanda de uma simples cabana que beirava o caminho para receber o primeiro socorro. Colocaram-no quase desfalecido numa espreguiçadeira, enquanto verificavam onde fora atingido. Descobriram apenas uma perfuração à bala, que cortara o músculo externo do ombro, não ficando alojada, que para os assistentes leigos, não parecia nada de gravidade. Enquanto era feito um chá de ervas, foram tratando de proceder a limpeza do local atingido. Euclides, na ânsia profunda se dirige para uma das assistentes: me acertaram... me eleva em tua oração Geracina, porque estou morrendo...
Foram as últimas palavras ditas pelo homem que comandou o outro lado do Mearim, com astúcia, estratégia e mão de ferro, por um período não menos que vinte e cinco anos.
Em poucas horas uma caçada humana foi deflagrada. Toda a região passou a ser vasculhada por homens tanto da força policial, determinada pelas autoridades do município, quanto por serviçais e jagunços que serviam ao patrimônio do falecido coronel. As buscas se intensificaram diuturnamente por várias semanas, sem que lograssem o êxito de prender os assassinos, que desapareceram para sempre, como se num passe de mágica.
São Luis/MA, 15 de fevereiro de 2013