O Galego

São cinco e dez da madrugada. A insónia impôs-se de forma absurda, espantando covardemente um sono já débil de cinco horas de trabalho. As voltas e reviravoltas dadas na cama fazem doer as costas e os ombros, sendo incómodo para quem espera pelo romper do dia para se levantar.

Noutros tempos a insónia arrogante vencia pelo cansaço e a única solução era aguentar e calar. Calar, sim, uma vez que quem dorme ao nosso lado não tem culpa de andarmos alvoraçados.

Se é de verão, amanhece cedo e às seis da matina já o sol acordou, convidando-nos para uma longa caminhada, num salutar exercício físico, até à tasca mais próxima onde o cheiro a bagaço se mistura com o odor do café acabado de moer e os mais sequiosos já molharam a pargana com dois tintos do lote e promessa de emborcar mais alguns. Sim, porque logo de manhã é que se começa o dia, “cos diabos”.

De Inverno a coisa soa mais fino, o frio e a escuridão acovardam o tasqueiro, marimbando-se para a insónia de cada um e ainda rosnando à vista dos clientes mais fiéis que o aguardam à porta.

- Mas vocês não têm sono? “Cum” raio!

Mas qual sono qual diabo, o dever fala mais alto. O que era daquele galego mal agradecido se não fora os clientes fiéis dar vida à aquela espelunca. Movimento a sério, àquela hora, só aos sábados e domingos com o pessoal que regressava das docas. Esgalgueirados e azamboados varriam tudo o que era comestível a preços económicos. Tudo feito de véspera pela mão da mulher do tasqueiro, calejada de tanto saber, na arte de ganhar dinheiro.

A dona Ermelinda, pese o facto de não ser Galega, era fina para o negócio. À sexta feira fazia serão de volta do fogão, engendrando mil e um petiscos, para sábado e domingo, tudo ser varrido pelos manguelas das discotecas. Agora que dava raiva ver o galego todo meloso para com aqueles garibus da noite e menos respeitoso para com o pessoal da copofonia, lá isso dava.

- Conho!.. negócio é negócio. – Respondia a um ou outro mais ciumento à laia de desculpa.

- Dá aí um abatanado com cheirinho. – Pede um cliente madrugador, com ares de ser outra vítima da insónia.

O galego, diligente, apronta-se a tirar o abatanado, com mais vontade do que serve os copos três à malta do tinto, algo observado por um cliente, meio ofendido pela discriminação.

- Então como é que é, é um no saco outro no papo? Está-me cá a parecer que não gostas muito de servir copos ao pessoal!.. É que se não gostas, é só dizeres, e passamos a ir a outro lado.

O coração do galego quase parou com este ataque ao seu negócio. Isto era cobardia da grossa. Era certo que gostava mais de servir cafés e meias de leite, pois isso dava mais dignidade à casa, num convite ao mulherio que consumia “pra” valer a parte de pastelaria exposta na vitrina, ao lado dos pastéis de bacalhau e sardinhas em molho de escabeche.

Mas raios, o negócio não permitia que se desse ao luxo de perder clientes. Ainda mais clientes da alvorada. Mal ele entrava, logo sentia a felicidade de arrecadar as primeiras moedas. Para além de poder contar com ajuda para manter ordem na casa caso houvesse altercação, com pessoal nocturno. Coisa rara, mas volta e meia, sempre aparecia algum “pinta” armado em espertalhão, tentando agredi-lo na parte que lhe doía mais: no dinheiro, sempre que tentava sair sem pagar.

- Não digas uma coisa dessas que até me ofendes. Vocês para mim são como família! Conho. Então se não fosse por vocês, eu abria o estabelecimento tão cedo? Agora têm que entender que neste negócio temos que agradar a todos. Tal como um sacerdote não escolhe os seus paroquianos ou um barbeiro não escolhe cabeças. Para eles, tal como para mim, todos são clientes e como clientes que são, a todos trato por igual… A bem dizer, como família.

- Pois!.. Pois, chora mais um bocadinho. Como se eu não conhecesse a tua gargantória!.. Galego dum raio!..Tens cá uma lábia.

- Saberes da profesión, conho, eheheh…saberes da profissão.

Lorde
Enviado por Lorde em 13/02/2013
Reeditado em 16/02/2013
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