Bunda Brasil
Subiu depressa a escadinha do lotação. Estava atrasado. Tinha que chegar logo até o centro da cidade e melhor seria usar metrô. O plano: pegar o lotação até a estação do trem mais próximo embarcar e chegar diretinho até o Largo de São Bento, no viaduto Santa Ifigênia.
Mal toma lugar no ventre do veículo batem-lhe às costas. T
apinhas amigáveis. Girou o pescoço, perscrutou. Era um amigo. Sempre o encontrava vez ou outra, de tempos em tempos, mais ou menos espaçados. A faina diária não deixava recompensar a vida com a boa amizade da infância. Morando no mesmo bairro acontecia, às vezes, encontraram-se num ponto de lotação, no caixa do supermercado, no metrô. Acontecesse, sempre tinha papo. A boa conversinha oca, os assuntos que tratados seriamente em outras instâncias, num lotação, são discutidas pelo povo, com o imaginário popular.
_ E aí amigo, beleza? _ tapinha nas costas.
_ Rapaz o que faz por aqui? Já tô no limite da hora colega. Tinha que estar a meio caminho, pelo menos.
_ Estou suave. Nem cedo e nem tarde. _ mostra os livros.
_ Ah, tá fazendo curso, que legal. De que?
_ Inglês.
_ Que coragem, já tent...
Mal terminada a frase, é atingido por espécie de fluido invisível e transformador. Tava virando vampiro, lobisomem, ou a Mulher Maravilha, quem sabe. Os olhos reviraram-se nas órbitas em trabalho de incorporação de Pai-de-Santo. Ficaram brancos, ao mesmo tempo semicerraram-se. Chupou o ar, aspirando pela boca quase fechada, como lhe jogassem água gelada às costas, por dentro da blusa, inopinadamente por pura sacanagem. Contorceu a espinha, o quadril, e gemeu.
_ Husssssssss , olha, olha, ai-Deus, ai-Jesus.
Tomado de surpresa tenta entender o amigo e membro da espécie compreende logo os sinais. Fora atingido pela imagem de mulher. Não qualquer mulher, mas morena fortuda, com quadris largos e redondos, a famosa bunda-de-tanajura.
Não era mais o mesmo: agora, o espírito incorporado naquele corpinho ,era baixito, começa a manifestar-se:
_ Olha que beleza! Que gostoso! Ai, como é bom, é muito bom! Bom demais. _ com a vozinha disfarçada do ventriloquista.
O amigo, sem jeito: _ É, é bom sim.
_ Husssssssss _ suspiro de êxtase, olhos revirados. _ Sê gosta, né, acha bom também, não acha?
Sem jeito, pigarreando: _ Hum, hum, sim...claro, claro...lógico, ora se não!
Geme lascivo: _ Olha, olha, vai virar, vai virar!
O amigo tenta olhar, quase ao mesmo tempo é impedido:
_ Não! Disfarça, disfarça...olha, husssssss, não, calma, olha de rabo-de-olho! Olha, ai,ai, olha...não, não, não olha. Não vê direto, finge, camufla, abafa...!
O outro ficava entre ver e não ver sem deixar de colaborar com o espetáculo, em respeito ao parceiro ferido por imagem tão macia e acalentadora.
Ao descerem do transporte rumo ao metrô estava irreconhecível. Completamente tomado, possuído, incorporado. Todo gemidos e “ais” e “uis”, meneando a cabeça como cobra enfeitiçada no ritmo das ancas acolchoadas da pobre moça que nem dava por ele. O parceiro achava engraçado e não se ofendia em ser esquecido e ter o papo interrompido inopinadamente, sabendo sem a menor chance em retomá-lo. Mesmo assim pra disfarçar ia puxando assunto qualquer: da política, da segurança pública, dos jogos panamericanos, do Brasil, da crise européia. Sempre interrompido, por muitas outras feiticeiras que lhes passavam às vistas. Era maldição das boas. Gemeu muito aquele dia e o amigo ficou quieto.