As janelas de São Paulo

Nas muitas vezes que estive no centro de São Paulo, na cidade, é muito indagador, para não dizer outra coisa, observar a variedade de pessoas pelas janelas desse mundo em especial.

Certa vez, isso já faz alguns anos, dentro do ônibus pude observar uma mulher em um prédio no centro. Ele estava ocupado, ao que tudo indicava, por grupos de pessoas que reivindicavam melhores condições de moradia e parecia, possivelmente, ser um daqueles imóveis que serviam aos interesses da especulação imobiliária. Esse é outro assunto, que tem várias problemáticas envolvidas, que não quero abordar para não injustiçar ninguém. Essa mulher, na faixa de uns trinta anos de vida olhava curiosa pra rua, por uma brecha da parte de seu desbotado vitrô do quarto ou quinto andar, usava uma touca e dava a impressão de ter acordado depois de virar a noite numa festa, e se pudesse arriscar uma opinião, pelos objetos que pude observar que compunham a decoração do apê da mulher e pelas pessoas que entravam e saia constantemente, a festa deveria ter sido lá mesmo. Pergunta difícil de fazer e mais difícil ainda de se responder.

Outra vez, também há alguns anos atrás, um rapaz estava numa janela de um cômodo do segundo andar de um estabelecimento comercial, e parecia, dado a roupa que usava, um dos trabalhadores do local, e olhava para fora como quem quisesse se libertar de lá, como se pudesse, caso fosse possível fazer sem se machucar, pular por aquela janela e sair voando. Talvez ele nem quisesse isso, e nem fosse um trabalhador, ou mesmo se fosse um trabalhador não quisesse sair de seu trabalho, mas seu olhar, seu modo como observava a rua, ainda denunciava uma forma de sair de seu mundo, o mundo secreto por detrás daquela janela.

Mais recentemente, quando num fim de semana passeava com amigos pelas muitas regiões dessa metrópole, vi uma mulher, nova creio eu, que num dia muito quente do começo do ano parecia fazer a faxina no segundo andar de uma padaria misturada com mercadinho, e pelo movimento que fazia, abaixando e subindo o corpo constantemente, parecia estar lavando o chão de lá, que, aliás, numa primeira olhada na frente do imóvel tinha duas grandes janelas, mas que quando abertas pela mulher era como se fosse uma varandinha, mas nesse caso com paredes, e o cômodo falado mesmo era outro, atrás desse. Penso se, assim como esse não era o verdadeiro, e sim o detrás, se as pessoas nessas janelas são o que pensamos ser, e não somente o que vemos ou achamos que vemos. Essa mulher, nova por sinal, apenas fazia sua função, parecendo indiferente ao que se passava na rua, cabendo falar que pelo calor do dia nada melhor que estar na rua, e que ela ignorava, basicamente.

O que será que essas pessoas fazem? O que as deixam ali dentro, enquanto um mundo de novidades, possibilidades, desilusões, amores, vivencias, histórias, discursos, medos, humores, experiências, se desenrola a cada instante, a cada momento. E não devo ser o único, acredito, da opinião que o pouco do que vemos é possível porque essas pessoas assim nos permitem, e por um lado, talvez mesmo sem terem uma noção exata disso, gostariam que participássemos de seus mundos, não diretamente, e por outro lado elas talvez nos observem, embora isso seja cada vez menos para poucas pessoas, dos poucos que ainda tem esse costume.

São vários os casos que pude, de um jeito ou de outro, presenciar. Outra vez, também no centro e de dentro do ônibus vi uma senhora, talvez sexagenária, com um jaleco ou algo parecido, da padaria ou mercadinho do alto da varandinha de um desgastado prédio ao observar ativamente a rua, talvez a mais ativa de todas nesse quesito, esperançosa, julgo eu, tentando achar alguém para conversar. Ela acompanhava praticamente todo mundo na rua com seu olhar, sem distinção de idade, credo, aparência, tipo de cabelo ou andar, na rua ou dentro de veículos como carros e ônibus.

Nessas janelas, varandas e universos predominavam as mulheres e não posso querer talvez explicar o motivo disso. Pode ser que, ainda nesse caso, estejam subordinadas a ideia masculina antiquada do lar, mas é apenas uma hipótese. Outra vez, assim como nas anteriores, pude presenciar uma mulher, possivelmente daquelas que usam o corpo como fonte de riquezas (no sentido menos literal e metafórico do termo), pois na diminuta varandinha que era anexa e externa a parede do prédio ela estava a observar o vaivém das pessoas, e o predinho, como muitos do centro, era o local aonde homens e mulheres, cada qual com seus interesses e funções, se acertavam, e os próprios trajes que ela usava, curtos por extensão, chamavam a atenção do mais distraído cidadão que fizesse o luxo de erguer o pescoço. Dado a expressão da moça, de traços joviais, jovem e tranquila, a varanda parecia ser uma rápida fuga do universo que estava envolvida, embora ela própria (a varanda) parecia uma extensão desse universo.

Falando mais de janelas e varandas, que de humanos, em dois prédios vizinhos, logicamente no centro, pude observar duas situações: de um lado um prédio bege desbotado com uma varandinha de canto e arredondadinha, com sua pequena mureta da altura da cintura de qualquer simples mortal, em que naquele andar, talvez o sétimo, ou um a mais ou a menos, eram constantemente habitados por algumas plantas, como uns pés de milho que secavam constantemente pela falta de água que seu mentor, que havia esquecido de lhe dar ou por não estar lá, sendo difícil de acreditar numa ideia de alguma maldade com essas representantes da natureza. O dono ou morador de lá plantou outras coisas, plantas, que não sei bem de que tipo são, mas parecem melhores cuidadas. Pontinho positivo para essa pessoa. Do outro lado da rua outro prédio, tão próximo do primeiro que o Homem-Aranha saltaria facilmente, igualmente sofria a falta de zelo e nesse caso mais pichado ainda, ocorria uma situação curiosa, pois lá era normal a noite observar uma luz azul, talvez roxa, talvez lilás escuro, ficando no ar a questão do que acontecia por lá.

Com minha limitada imaginação fica a ideia de festa, mas de qual tipo? Quem vai lá? O que será que acontece? Que horas que começa e acaba? Só vai quem é da região? Um estranho poderia entrar? É paga a entrada? É oficial, ou esse conceito não se aplica lá? E o dono do apê do outro lado da rua poderia quem sabe, ir nessa festa dado que só precisaria atravessar a rua ou arriscar o caminho menos convencional. Poder-se-ia até para imaginar um diálogo entre os dois:

- Olá meu velho, estou organizando uma festa aqui, vai começar as 20:00, os meus amigos do centro todos vão, inclusive os mais alternativos... Não confunda o lugar, lá as luzes são azuis!

- Claro meu chapa! Vou cuidar das plantinhas novas que estou cultivando agora, lembra-se do milho que eu plantava? Fiquei um mês fora e ele não resistiu, o passeio foi bom só para mim, veja só.

- Sim, eu vi. Da próxima vez se quiser me avise que molho suas plantas queridas, amigas inestimáveis.

Possivelmente isso pode ser um delírio do autor desta crônica, mas às vezes é necessário, quando na medida do possível.

Vou fechando com outra situação, na realidade essa pode ser presenciada a qualquer dia, dependendo do local, como nas avenidas principais da região central. Era um daqueles prédios sem garagem, diminutos, um ovinho de codorna como diria uma amiga minha, sufocantes de tão pequeno e pichado pela difícil e não menos artística linguagem desse idioma, parte já fixa da decoração desse prédio, e nele tinha também outros complementos decorativos, como as inúmeras roupas dependuradas num número pouco menor de varais improvisados, como nas cadeiras e portas que as roupas multicoloridas ajudavam a dar um tom a mais nesse prédio. Pelo seu tamanho, bem pequeno, e distância a que estava dele, o elemento humano quase não aparecia, o que aparecia mesmo era a obra desse elemento humano, como os já citados varais e as muitas portas e janelas abertas, talvez um convite para partilhar do universo que ali se pronunciava, e embora fossem apês diversos, cada um com vida independente um do outro, o prédio parecia como uma grande casa, o que talvez fosse mesmo, pois cada apê tinha seus vários cômodos e cada um, um universo, e se minha impressão pudesse opinar diria que até existe livre acesso entre eles, isso se o desejo passar a razão.

Finalizo aqui, pensando como esses mundos podem nos tocar, e imaginando também que, de um modo ou de outro, fazemos parte deles.