Cúmplices
Quando seus olhos se cruzaram, os poucos segundos materializaram-se em horas, anos, uma vida inteira. Porém, sem perceber, ela estava sendo observada. Era uma tarde comum, dessas de sol inimigo que encurta as vestes ou dispara o coração, sedento por um frio qualquer, entre uma esquina e outra.
Ao longe, olhares a observaram em meio ao vapor quente. Amedrontada, seus punhos cerraram e, ao redor de si, a dúzia de sujeitos parecia querer despi-la de todos os segredos, ou condená-la pela sujeira das emoções. Até que um olhar a deteve.
Escondido entre a casualidade do julgamento imaginário, ela acompanhou passo a passo o declínio, o trôpego desabar do indivíduo que, honorário em sua covardia, havia participado daquele circo. Apesar de sorrateiro, ele ficou ali, a observá-la. Não havia expressão em seus olhos, mas um sorriso amarelado que ele disparava aos passantes, como uma espécie de vergonha em drops.
O detalhe a fez ensaiar seus próprios passos, das horas anteriores até se ver ali, sem saber, cometendo o crime o qual estaria sendo designada a pagar. Abaixou a cabeça, permaneceu algum tempo confusa e, perdida em sensações inexplicáveis, levantou-se. Com a corda no pescoço, ela ouviu sua sentença.
Uma plateia assistia tudo, estudava os gestos da acusada em meio a falas pequenas e, tal qual um químico, mastigava fórmulas a fim de dosar a definitiva regência. Famintos.
Ela suspirou seu último desatino, lembrou-se de decisões daquela manhã, um bobo entardecer que queria ter visto e, prestes a sucumbir, o viu.
Em seus ouvidos, uma canção* começou a tocar. Não havia, de fato, uma resolução, uma pista ou redentor capaz de interromper a execução. Mas, a despeito do fim, eles se identificaram e, à luz de um entardecer vigoroso, pouco sentiam as pernas e, naturalmente, sorriram, inexatos, medrosos e, ao mesmo tempo, amantes. Cúmplices.
*Billie Holiday - I'll Be Seeing You