Os mortos de minhas estantes

                         Na escola primária
                         Ivo viu a uva
                         E aprendeu a ler.
                         Ao ficar rapaz
                         Ivo viu a Eva
                         E aprendeu a amar.

                                        Lêdo Ivo

      Desliguei a televisão e fiquei zanzando pelo meu gabinete. Isso por volta da meia-noite, sexta de carnaval, depois de assistir a entrada de alguns blocos nas avenidas iluminadas do Rio de Janeiro, Recife e Salvador. Nada de extraordinário; nada de novo; o carnaval é o mesmo de todos os anos. 
      Mas deixemos o carnaval pra lá. A ele poderei voltar quando o silêncio e a ordem pública forem restabelecidos. Na Quarta-feira de cinzas, e após o meio-dia.
     Dizia, que fiquei zanzando pelo meu gabinete. Num determinado momento, sentei-me na minha velha e surrada cadeira de balanço. Abri dois ou três livros, e reli algumas de suas páginas.
     Reler um livro é, além de agradável, proveitoso. Vai-se descobrindo tudo aquilo que ficou escondido ou passou despercebido no decorrer da primeira leitura. Aprendi que reler livros é muito bom com o Carlos Heitor Cony. O autor de Informação ao Crucificado chamou a atenção para isso em uma de suas belíssimas crônicas, que guardei, não sei onde!
     De repente passei os olhos pelas minhas estantes. E redescobri um livro de contos, os melhores, do Mestre Lêdo Ivo, morto, faz pouco tempo, ou mais precisamente no dia 23 de dezembro de 2012.
     Morreu, não na sua Alagoas; não na sua Maceió querida, mas em Sevilha, uma das mais encantadoras cidades da Andaluzia. Estive lá.
     Uma única vez, e assim mesmo de longe, vi o saudoso e magnífico escritor das alagoas. Cruzei com ele em um corredor da Academia Brasileira de Letras, numa de minhas habituais visitas àquela Casa de Letras. Com um solene e sonoro "Bom dia!" o homenageei. Notei que ele aceitara minha modesta saudação: agradeceu com um discreto sorriso.
      Entre os seus melhores contos, História de Natal me agrada demais. Verdade é que, depois que a gente lê Lêdo Ivo, há de concordar, sem pestanejar, com a escritora Rachel de Queiroz. Disse a nordestina Rachel: "Lêdo Ivo, que jamais se pode ler sem um sobressalto de inquietação e de ternura."
     Passou, pois, o Lêdo Ivo a ser mais um entre os escritores mortos de minhas estantes. Nelas, que chamo de mausoléu dos grandes vultos, estão, entre outros, Humberto de Campos, Catulo, Otto Lara Rezende, Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Zé Lins do Rego, Machado de Assim, Cecília Meireles e Mário Quintana.  Ah! São tantos!
     Não poderia ter melhor companhia nas minhas noites de insônia, em que sou obrigado a zanzar, perambular à toa,  pelo silêncio do meu gabinete, atravessando madrugadas, que parecem intermináveis...

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 09/02/2013
Reeditado em 23/06/2013
Código do texto: T4131385
Classificação de conteúdo: seguro