Rosnar da fé.

Somos criaturas feitas de pedaços,

pedaços de outras criaturas.

Somos criaturas frankensteinianas,

retalhos de tantas outras,

sobras de paragens lá de longe,

tecos vindos de outros quintais,

pedaços que se fundem num quebra-cabeças sem fim.

Somos seres com raízes misturadas, entornadas do mesmo caldo,

nas nossas veias corre o mais puro sangue vira-lata,

a nossa alma se faz de retalhos sem sim.

Somos estranhas criações sem nexo,

peças de uma engrenagem maior que se diz gente,

gente miscelaneada, uma gente que se olharmos fundo

veremos Deus, só assim veremos Deus.

Somos tão diferentes e tão iguais num mesmo verso,

num mesmo passo, numa mesma fervura.

Nos olhamos na rua com receio de só olhar,

esquecendo que somos frutos da mesma mãe,

escapulimos de um ventre que tem um endereço só,

todos nós.

Nossos ossos estão fincados num mesmo nervo,

por isso não conseguem vibrar sozinhos,

nem, tampouco, sonhar na solidão de uma fronha sem par.

Quem que tenha nos feito, nos fez abraçados à mesma pegada,

ao mesmo suor, ao mesmo rosnar de fé.

Somos mais do que grãos de areia desnudos esperando que alguém pise na praia pra nos fazer mudar de destino.

Somos bem mais do pretos, amarelos, mulatos, velhos, moços, homens, mulheres, seja lá o que mais for.

Somos bem mais do que ricos, pobres, safados, santos, lindos, esquecidos, seja lá o que mais for.

Quando você sorri, eu sorrio dentro de mim, acredite.

Se você se afunda nas covas dos medos, dos gritos capados, dos sonhos desmerecidos, eu também sofro com você, e como.

Cada olhar, cada escorregão, cada mão estendida ou jogada fora, faz o outro tremer, desatinar, morrer um pouco, nascer um pouco.

Este outro, se prega no outro, que se prega no outro, que se prega no outro até todos os outros ficarem alinhavados na mesma senzala.

Todos estamos unidos com um fio mais forte que já se fez existir.

Você e eu.

Seja eu quem for e seja você quem for.

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