A mulher do leiteiro





 
                               - Na literatura, mais  que na ciência e nos manuais dos moralistas, é que ainda podemos encontrar caminhos que nos revelem alguns segredos da vida. E tem mais: quando lemos um escritor qualquer, lá no fundo estamos querendo saber como ele vive a vida. Ou se ele descobriu algo novo.
                               Vou conversando com meu amigo imaginário. Meio ressabiado, eu o provoco.
                               - Mas então, estamos sempre querendo aprender? E buscamos respostas nessas leituras?
                               - Sem dúvida. E você sabe disso. E os autores mais modestos, numa frase, numa observação, podem nos mostrar o óbvio, que, ao contrário do que muita gente pensa, não é tão fácil assim de enxergar. Esses bons escritores, às vezes até nos ensinam, mas sem esnobação, sem nos constranger. Dá pra entender?  E não precisa ser um romancista, pode ser um poeta, um  mero prosador, um músico, um simples sambista.
                               Nesta altura, o meu paciente leitor estará pensando: “mais um maluco no mundo, vamos ver o que vem   por aí”.
                               Retorno ao meu diálogo. - você agora me deixou bem curioso. Me dá um exemplo de um sambista que tenha dado um bom recado, algo aproveitável.
                               -  Você já ouviu falar no Noel Rosa?
                               - Claro, claro.
                               - Lembra-se da letra da música  “Mulher do leiteiro?”   
                               - Confesso que não.
                               -  No tempo dele, o leiteiro deixava as garrafinhas de leite nas portas  das casas. Pois bem: a letra da música dizia que toda gente  sofre, sofre no mundo, mas a mulher do leiteiro  sofre mais. “Ela passa, lava e  cose, controla a freguesia e ainda lava as garrafas vazias.” 
                               - Entendi. Numa frase simplória, o Noel fala do sofrimento do mundo, do sacrifício das pessoas, do trabalho diário e  da rotina.
                               - Exatamente. Já pensou se ele falasse em estoicismo, “mais valia”, capital, trabalho, sociedade e o diabo a quatro?  A dificuldade para ver o óbvio seria maior. Você vai gostar mesmo é do final da musiquinha. A mulher do leiteiro “que trabalha até demais, diz que tudo que ela faz ainda é café pequeno”. Morou? Café pequeno...  Apesar de tudo não perdia a alegria de viver. Que lição!  
                               - interessante, amigo, a mulher do leiteiro dava um sentido alegre à sua vida.
                               -  É isso aí. Portanto, vá tratando de dar um sentido à sua vida, ao invés de procurar o sentido da vida. Mas como eu lhe conheço, sei das suas obsessões,  provavelmente já deve estar  pensando numa estória trágica. O outro lado da moeda. Quer ouvir a estória da mulher do padeiro?
                               - Não, não! Me deixa  assimilar esses exemplos, devagar. Por ora, prefiro ficar  com a mulher do leiteiro.    E não venha me falar de que essa vida é um moinho, do grande Cartola... 
 




                  Nota: Esta crônica foi publicada em 2011 e lida pelos amigos e amigas dos meus primeiros tempos do Recanto. Republico para dar oferecer aos novos amigos, que, felizmente, aumentaram consideravelmente. Fiz pequena modificação no final. Gilberto