O acidente
Era um belo dia. O sol brilhava no céu azul no céu sem nuvens. Uma deliciosa brisa corria por entre as verdes folhas das árvores que cresciam ao lado da rodovia, soprando folhas rodopiantes que pousavam suavemente sobre o asfalto. Podia-se ouvir o canto dos pássaros, e de tempos um pardal ou outro passava num voo rasante rumo às árvores do outro lado da rua. Era um belo dia, e Sérgio se sentia tranquilo ao volante do seu celta preto, já não muito novo e com um ou outro amassadinho, rumo à casinha que alugara em Caraguatatuba. Depois muito planejamento finalmente ele e Rosana, sua esposa, finalmente conseguiram conciliar suas férias anuais. O dinheirinho que conseguiram economizar garantiu o aluguel de um simpático bangalô mais ou menos perto da praia. As coisas ultimamente iam tão bem que até elogiado no serviço ele foi pouco antes das férias começarem. Rosana também estava feliz. Recém-promovida, se deu ao luxo de comprar novas peças de banho, de sua escolha, para ela e o marido. Mal podia esperar para chegar e saltitar entre as ondas do mar salgado.
Após uma curva bem aberta seguia-se um grande trecho de reta, e lá do outro lado vinha um fusca azul, de um azul claro desbotado, que contrastava tremendamente das grandes ilhas cinza-amareladas de massa de funilaria de segunda, que numa nauseante velocidade lenta passou da faixa para o acostamento, do acostamento para a faixa, da faixa para a contramão e num imenso e perfeito arco, passou da contramão para faixa, da faixa para o acostamento, do acostamento para a faixa da faixa para contramão da contramão para frente do Celta. Precisão milimétrica.
A sorte de Sérgio foi que num dia tão lindo e calmo ele conduzia tranquilamente seu carro em uma velocidade baixa, então o susto foi mais atordoante do que o solavanco da batida. Após dois segundos para entender que haviam batido ele se virou para Rosana, que levou os mesmos dois segundos para entender que haviam batido e se virara para Sérgio. Do fusca não vinha qualquer sinal de vida.
Sérgio abriu a porta e seguiu vagarosamente rumo à porta do motorista do fusca, mas no meio do caminho achou mais importante ver se seu carro estava muito amassado. Quase nada, graças a Deus. Ele prosseguiu rumo à porta do motorista do fusca.
Ele olhou pela janela e viu um senhor não jovem mas também não totalmente idoso, do tipo que as pessoas chamam de tio. Esfregava a região entre os olhos como quem acabou de ter o cérebro chacoalhado por uma batida.
_Senhor?
O senhor olhou desorientadamente de um lado pro outro, então para a diagonal inferior direita, para cima e finalmente para Sérgio.
_O que?
Milhares de resposta a essa pergunta surgiram na mente de Sérgio. Julgou “O que o que?” a mais própria, mas ao invés disso respondeu:
_A batida. O Senhor está bem?
O senhor olhou para os dois lados em um gigantesco pânico de meio segundo, virou para Sérgio novamente e, com dois olhos arregalados mas não muito focados, disse:
_Batida? – E num processo em que parecia que aquele senhor estava pensando rápido demais para que seu centro de fala processasse (ou simplesmente não estava processando) soltou rapidamente diversas silabas soltas com toda a velocidade que sua desorientação permitia – Ah… er… ah… am… - E finalmente, quando alguma coisa pareceu finalmente se conectar em sua mente, veio uma palavra – Quando?
Quando? Como quando? Por um instante Sérgio olhou indignado para o motorista do fusca, então imaginou se o aquele senhor não tinha batido a cabeça em algum lugar. Enfim…
_Agora. Você acertou o meu carro.
_Acertei? Tem certeza? – O senhor abriu a porta do carro, segurando pela janela aberta. A porta soltou um imenso rangido, como se já viesse enferrujada de fábrica. Fungando e gemendo, o dono do fusca usou a porta como muleta para levantar, e quase caiu quando seu pé esquerdo enroscou no cinto de segurança frouxo. Ele devia ter batido a cabeça com muita força. – Mas eu tava dirigindo numa boa!
Destrambelhadamente ele se aproximou de Sérgio, o suficiente para que seu hálito pudesse ser sentido, para a tristeza geral dos envolvidos. O cheiro parecia algo entre cachaça barata, ovo podre e uma laranja que ficou em uma gaveta por seis meses. Desorientado como estava aquele senhor devia ter bebido três litros disso. Sérgio viu mais de perto a pessoa que tinha estragado um dia tão bonito. Calvo, trazia uma dúzia de fios de cabelo no cocuruto, que fazia fronteira pra vasta juba que saia da nuca e têmporas, castanha igual ao bigode volumoso, parecido com uma vassoura de piaçava. Mais escuros eram os pelos que saiam de sua camisa velha que devia ter sido branca algum dia, mas que agora era parda com gigantescas machas marrons. O marrom com gigantescas manchas pardas, Sérgio não tinha certeza. As calças marrom-escuras traziam manchas de gordura na região das coxas. Ele devia ter comido pastel engordurado junto com o que quer que fosse o que ele bebeu. Cheirava a álcool pelo corpo todo, como se a roupa também tivesse bebido umas.
_É… Bateu.
A imbecilidade bêbada daquele homem estava começando a terminar de estragar o dia, que estava tão bom, de Sérgio.
_É, eu sei que bateu.
_Você paga?
É. Aquele foi o limite.
_Como assim? Você vem em ziguezague, entra na contramão, bate no meu carro, e quer que eu pague o conserto?
Os carros que se acumulavam atrás do acidente começavam a buzinar impacientemente. Alguém em algum lugar berrava pra que saíssem do caminho. Outro alguém em algum lugar berrava algo sobre a mãe dos dois.
_Tira essa porcaria daí, vamos pro acostamento. – enfim disse Sérgio.
No carro, enquanto manobrava, Sérgio praguejou.
_Velho desgraçado, bicho folgado do inferno…
Ao seu lado Rosana revirava os olhos e enfim resolveu interromper.
_Mas amassou muito a frente do nosso carro?
_Não, foi só um arranhado que esse merda desse bêbado blá blá blá… – Rosana parou de prestar atenção.
Com os carros acidentados (apesar de só estarem levemente arranhados, no fim das contas) já no acostamento e o fluxo de carros que não tinham nada a ver com a história voltando ao normal, Sérgio pode voltar a discutir com aquele senhor cujo nome não sabia e nem queria saber.
_Como você quer que eu pague o acidente que você causou? – Disse Sérgio, dizendo o “você” com a ênfase especial que ele guardava pra ocasiões de berreiro com esta. – O que você tem na cabeça?
O homem olhou com firmeza para os três Sérgios que via.
_Se você não paga então ninguém paga porque eu não tenho dinheiro! – O tom exclamado dessa última parte quase fez o homem cair pra trás, mas ele recuperou o equilíbrio e voltou a ficar ereto com a elegância de uma minhoca arrancada do solo.
_Então você não deve ter dinheiro pra pagar o conserto dos dentes que vou arrancar na porrada, seu lixo!
_Como se você fosse homem pra isso.
Atrás de Sérgio uma porta batia. Era Rosana cansada de assistir. Olhou a frente do celta, olhou a frente do fusca. Viu alguns arranhados no para-choque dianteiro do celta, mas no geral todo o impacto foi absorvido pelo plástico duro, que ficou levemente deformado. O fusca estava não pior do que estava antes. Olhou para aqueles dois idiotas, que pararam de discutir e agora a estavam observando com um semblante de estupefação e estupidez.
_Tudo isso por uma batidinha dessas? – Disse Rosana.
_Olha aqui, dona… - Ia dizendo o homem, enquanto Sérgio, num episódio de bom senso, ficou calado e procurou passar despercebido
_Vocês vão ter que pagar o conserto do meu carro.
_Conserto do que? O que tem de diferente no seu carro?
_ Ah.. hum… ah… her… Não…– De repente a pouca coesão que existia na mente daquele homem parecia ter se evaporado numa nuvenzinha que decidiu que estava cansada de tudo aquilo. – Não tem nada não…
_Então vai embora daqui! – Gritou Rosana tão alto que quase causou outro acidente com o susto que deu nos pobres motoristas inocentes que passavam por perto no momento. O homem correu o mais rápido que podia, suas pernas num ziguezague que numa situação de menos pânico resultaria numa queda. Entrou no fusca e disparou a toda a velocidade, embora ele tivesse corrido mais rápido a pé; não pela velocidade da corrida, mas pela lerdeza do veículo. Antes de desaparecer no horizonte o escapamento do fusca ainda soltou um estouro, como se o próprio carro estivesse fugindo de medo. Virando para o lado, Rosana viu que o marido não estava mais ali. Olhando pra trás, viu que ele já estava no carro sentado no banco do motorista. Ótimo. Seguiram viagem.