Meu crime
Durei dois segundos diante da proposta. Éramos eu e a minha congestionada consciência que, ocupada em repelir a rebelião de alcoólicos que invadiam a fortaleza, perdeu a chance de me segurar o pé, quando pulei no abismo. Quando ela se deu conta, a tragada já havia acontecido: era o meu primeiro cigarro.
Naquela noite, havia bebido além da conta, da minha e da dos outros. Consumida pela insaciável vida que doses de cachaça me proporcionavam, achei sabor ao sentir que uma fumaça meio marginal ocupava os espaços da narina e, de uma inspirada, pude conduzir rios de nicotina para dentro.
A culpa não era de ninguém. Simplesmente, a noite estava propícia e a sensação de ilimite havia ocupado todos os assentos da minha mente e ainda enchia o chão do teatro. Até que eu sugeri ao fumante que me passasse um. Lembro na sobriedade ou não da resposta do sujeito.
- Não.
- Por quê?
- Não quero que depois briguem comigo por ter te dado cigarro.
- Mas ninguém vai saber.
Após duas tragadas obsequiosas e um gole que esvaziou o copo de plástico, ele disse:
- É o seguinte. Eu vou colocar o maço aqui neste meu bolso da perna e se quiser você pega.
- Quer saber...
Lasquei a mão no bolso do rapaz e puxei o maço. Não lembro a marca nem se acendi com fósforo ou isqueiro. A coisa estava na tragada. Assim que aconteceu, eu soltei fumaça em questão de segundos, sentindo – entre lapsos de sensatez – o prejuízo futuro. Sério mesmo?! Não senti nada disso.
Aprendi, sem livro ou piada de bêbado, que fumar o primeiro cigarro é coisa punk, deixa a gente em letargia, uma ressaca precoce. Imagine você se o acompanho com rios de bebida sem parente ou rumo. A coisa subiu na cabeça e, tal qual hemofílico, passei horas jorrando inconsistência.
No dia seguinte, com uma dor de cabeça de crucificar Jesus em toda sua santidade, acordei com o dedo na cara, literalmente. E o cheiro que exalava dele era, no mínimo, memorável – considerando esta a pior de todas as palavras existentes –. Na mesma hora, olhei para minha mãe que zanzava ao meu redor, exigindo que eu acordasse.
Escondi a arma do crime e corri para debaixo do chuveiro, a fim de jogar no ralo este novo “eu”, mais sujo e menos digno. E, entre pingos de água fria, dores estaladas na cabeça e um dedo que merecia ser decepado, eu jurei. Passei alguns minutos provando para mim mesma que a besteira podia ficar ali, debaixo de um grosso tapete chamado “nunca mais”.
Mas nunca fui boa com essas coisas. Se você chega ao ponto de ter que jurar, eu pensava, nem confiável você é. E, não sendo nada disso, não havia surpresa se melasse a brincadeira com a quebra do contrato. Afinal, todos estavam esperando. No caso, eu.
Dito e feito. Algumas semanas se passaram até eu fumar o meu segundo cigarro. Era dia de bobeira e eu sempre soube aproveitar esses dias. Estava esperando o ônibus quando ouvi moedas em meu bolso. Tirei cerca de quatro rodinhas gastadeiras e olhei em volta, até que achei a barraquinha de um tio bem próxima da parada de ônibus.
Alarguei minha confiança de que o coletivo não iria despontar abusadamente pelo horizonte e segui em direção aos bombons. Como nunca fui mesmo muito decidida – só em estados ébrios –, fiquei alguns segundos parecidos com minutos olhando para aquele punhado de doces e salgadinhos.
- Me veja um... Um... Me veja um cigarro.
Juro. Se fosse contabilizar em anos-luz a velocidade daquela fala, acho que muita espaçonave iria chorar diante de minha rapidez. Assim, sem pensar, puxei as moedas, perguntei quanto era e apontei o produto ao rapaz. Ele me perguntou se queria azul, vermelho e eu, amadora fingindo diversão, perguntei
- Qual a diferença?
- Vermelho é mais forte.
- Hum... Me veja um vermelho.
Definitivamente, eu havia embarcando na resoluta forma de vida das lesmas, dos animais e do instinto incompreensível. Mas quem disse que eu estava preocupada? Acho que dei umas três tragadas, isso a última sendo pela metade. Arriei no assento de ferro e, preocupada com o olhar alheio, escondia meu amadorismo e rebuliço estomacal, não necessariamente nesta ordem.
Naquele dia, eu estraguei cigarro, o joguei pela metade no chão e, completamente envergonhada, tratei de me lembrar do juramento com a ânsia de estar perdendo as estribeiras, o rumo. Mas já era tarde.