Eflúvio
Pelas frestas das portas, no pouco falador encosto de cadeira e até na sola do sapato dos passantes, era possível sentir aquele cheiro, aquela carcaça incômoda e sem rosto.
Em poucos minutos, ela identificou: era álcool. Fazia tempo que ela não sentia aquele odor e, a valer pelo ambiente, chamava seu nome de forma marginal, distante de seu habitual assento e origem.
Diferente de qualquer constatação que salte, ela não era alcoólatra, não vivia nenhuma jornada depressiva ou havia ressentidas perdas nos fios costurados da roupa. Era um dia normal, “ferramentalmente” estabelecido para toda e qualquer quinta-feira que já vivera. Olhou para os lados e ninguém, a não ser ela, parecia estar incomodado com o cheiro que, de segundo em segundo, dominava suas narinas.
De forma perturbada, completou oito horas e saiu às ruas à procura de uma curva, um cruzamento, uma brisa que a livrasse do cheiro que já estava lhe comprometendo as estruturas.
Parecia estar em tudo: nas rodas dos carros que marcavam criteriosamente seu habitat na maresia do tráfego, na alvejada coluna de pedras que exalava de suas alpinistas folhas um líquido vaporizado, no semblante dos transeuntes e, até, no chacoalhar de sacolas que seguiam levitando pelas avenidas e becos. Estava ali, a cólera desconhecida.
Não havia, de fato, uma explicação. Como todo bom sujeito não supersticioso que tropeça sem plateia pelo enigmático balé de sinais, ela decidiu se entregar. Sentou no primeiro bar que viu no caminho e pediu uma cerveja. Enquanto esperava, puxou o maço de cigarros e gastou-se a fumar com sofreguidão e uma lascividade pouco condizente com o acervo léxico costumeiro de suas ações.
Ela estava acorrentada àquele odor e se perguntava por que. Em toda história humana, nunca havia lido nada a respeito. Como grilhões machucando os tornozelos ou broca que incide sobre a dentição sem cuidados, ela ardia de dúvidas e um medo confuso de estar no caminho da morte. Mas, ao contrário da maioria, ela não estava envolta em um coquetel aromático de flores, mas de álcool.
Assim que percebeu o copo na mesa, ela virou em roleta russa três doses. Esperou alguns segundos para abraçar de vez a etilidade e testou o olfato. Sem sucesso. A lógica do processo seria entornar e, de pronto, matar a famigerada ousadia daquele perseguidor. Infelizmente, com a mesma agilidade que o álcool da cerveja percorreu sulcos e reentrâncias, o cheiro, aquele que atribulava a insanidade, destacou-se em meio a todos. Ela sentia ser essa a sua sentença. Ela cairia em desgraça ali, em uma sarjeta de polegadas ausentes.
Desnorteada, pediu mais e mais doses. Logo, acabou misturando as garrafas, os nomes e rostos. Finalmente, quando a descompostura havia sido batizada em dicionário popular com o seu nome, ela simplesmente esqueceu o motivo de estar ali e por que gastara todo seu salário, se endividando até com um sujeito chamado Jonas.
Quando acordou no dia seguinte, sem saber ao certo como chegou, sentiu-se nauseada e infame. Melindrosa consigo, ela, desatentamente, puxou forte o ar duas vezes, a fim de apunhalar-se de suspiros. Quando fez isso, ela finalmente sentiu. Não havia mais cheiro, perseguição, ela estava, enfim, respirando o mesmo ar poluído e comum da cidade que nascera.
Certificou-se de que frestas de portas e ranhuras marginais não exalavam, mesmo que sutilmente. Não. Mal se sentou em alívio, lembrou em sobressalto de estar atrasada e correu para o trabalho. Depois de alguma sessão de desculpas vazias, sentou em sua cadeira, observando, agora com mais cuidado, o mesmo abrir e fechar das portas, o exato trafegar das solas, a cadência severa de normalidade.
Em segundos, despropositou-se a chorar em demasia, em soluços e tremulantes gestos, como se tivesse chegado ao beco de tudo. Era possível ouvir o ranger de seus músculos que, aos poucos, soltavam-se do molde, da forçada maquiagem que abreviava seus pensamentos. Vislumbrou, por alguns segundos, a vergonha de estar ali, a certeza de que, se continuasse, morreria com lírios nas mãos e a sala vazia. Escreveu algo em papéis avulsos e saiu à procura de si em meio ao regurgitar de odores transeuntes.