A descoberta

Passei anos encurvando as costas antes de pegar no sono. Enquanto isso, eu rezava repetidas vezes entre embaraço e espiadas apreensivas. Era, de fato, real e ele estava ali, observando do alto nossos corpos indefesos até o ataque definitivo.

Apesar do esforço de vigília, acordava pela manhã com um gosto de fraqueza na boca e a sensação de fracasso juvenil. Mesmo vencida e em trapos, erguia meus olhos em direção ao inimigo com uma fingida insígnia de autoridade em meu semblante. Na verdade, fazia isso para notificar-me de qualquer irregular movimento do suspeito, seu riso malévolo e para averiguar se, de alguma forma, ele planejava nos eliminar pela manhã mesmo.

Quando a noite chegava, eu era convocada pela família a entrar no quarto, ligar o ar condicionado e arrumar a cama. Exatamente nessa ordem. E lá estávamos nós, naquele embate frenético, silencioso. De canto de olho, o observava e ele a mim. Garantia minha dignidade por, pelo menos, uns dez segundos até correr desembestadamente porta afora.

Eu era a única a perder-se de preocupação. Passados alguns minutos de escuridão e profundo sono alheio – dormíamos no mesmo quarto –, lá estava eu, automaticamente nomeada vigilante, encarregada suprema de vigiar o Cascatinha.

Várias vezes eu constatei que seus olhos e cabeça se mexiam. Em dias mais tórridos, ele sussurrava meu nome. Com os dedos trincados no ouvido, castigava os deuses do sono pela demora da entrega. Mas de nada adiantava estalar xingamentos, encostar-se ainda mais “na costela”, a fim de espantar o boneco com minha proteção maternal garantida. Na verdade, a história mesmo era fechar os olhos e torcer para viver o suficiente.

Acredito que eu era, sem modéstia, um produto bem acabado das estórias de lanterna. Naquela roda de desafortunados, "causos" como a Xuxa e suas assassinas unhas ou o Fofão com seu punhal maquiavélico alojado no estômago, transformavam-se em relatos vivos, sanguinários.

Salvando a dignidade das calças, eu invadia o quarto, decidida a revolucionar de olhos abertos. Mas em um sobressalto, perdia a parada ao vê-lo convicto de seu crime e supremacia. Então eu pensava que, se ele não tinha unhas, com toda certeza tinha um punhal coçando no estômago, pronto para ensanguentar o assoalho enquanto deixava ao lado dos corpos aquele bilhete malcriado que todo boneco com tendências homicidas deixa.

E eu não garantia averiguações nem estudo minucioso de caso, já que tal qual assassino em revoada, eu sapecava dali em questão de segundos. Sempre fui dessas de correr antes e perguntar o que aconteceu depois. Definitivamente, eu não era Marty Mcfly, não ligava para quem me sujasse a honra. Afinal, para quê? Não iria desfrutar do legado de minha valentia no post mortem mesmo.

Não lembro quando a coisa realmente cessou. Mas, pouco a pouco, a ameaça ia desaparecendo. Um dia, o armário foi jogado fora e, junto com ele, a lembrança da despedida esperada. De fato, algo ficou. Principalmente, a certeza de que, mesmo especialista em assustar indefesos, o tal boneco nunca ia descer daquele armário, cortar-se friamente e matar a todos, respingando nossa cólera em seus cabelos alaranjados. Descobri que nem mesmo um boneco seria capaz de dar três passos sem cair morto depois de ter cortado a própria barriga. Se eu soubesse disso antes...