Das primeiras palavras

Quando disparei meu primeiro “caralho”, o eco da sujeira reverberou, desatordoou a porta de faroeste da cozinha de casa e estremeceu o líquido meio dourado que, tranquilamente, acompanhava a feitura da janta. Ela nem esperou dar o último gole da habitual cerveja.

No ritmo frenético do meu frágil coração, passos que se aproximavam pareciam estraçalhar o azulejo e, sem piedade alguma, prometiam fazer o mesmo com aquele palavrão saído de forma marginal e bem mais estrondoso do que deveria. Desejando um lapso maternal ou uma daquelas máquinas de disfarce de voz, torci para que o álcool não houvesse desestabilizado a serenidade genética. Mas era tarde demais. Encostando a mão na porta, ela disse:

- O quê?

Realmente. O que? Que merda eu tinha feito? Eu simplesmente tinha explodido a dignidade do Clube Secreto de Palavrões e seu anonimato estava seriamente ameaçado pela minha tremedeira congênita. Desde sua fundação, datada de antes de antes de alguma coisa, essa sociedade se orgulhava de sua discreta figura. Apenas meninas e meninos medrosos e menores de 13 anos podiam ocupar suas cadeiras.

No altar das injúrias, jurávamos professar a coleção de palavrões em locais com dia e hora marcados e tínhamos uma cota mensal. A coisa era muito certinha e eu assinei gastando meu primeiro “Puta que pariu” com louvor.

Mas, assim como tínhamos direitos, éramos constantemente vigiados caso houvesse vacilos que, nas letras negritadas, eram denominados “potenciais quebras de contrato”. Lembro bem do dia em que o “boca suja” saiu da irmandade. Mas é que ele exagerou. Em uma única expressão ele gastou a cota de nove associados e, sem se arrepender, repetiu ela mais quatro vezes. Não é à toa que, quando queimaram seu contrato, muita gente comemorou – mesmo sem poder usar de seu direito de clubista até o mês seguinte.

Eu tinha conquistado amigos por lá e, mais que isso, podia esbravejar feito adulto sem ser repreendida por ninguém. E também, a coisa toda não custava um centavo. As reuniões aconteciam sempre entre a queimada e a hora de subir. E a tática era boa, já que servia como uma espécie de descarga antes de adentrar ao seio familiar novamente.

Infelizmente, eu fraquejei. E, enquanto minha mãe me observava vomitando gaguejos, eu só pensava no meu provável desligamento e na saudade que haveria de me consumir durante anos. É que o meu delito era o mais grave. Além de perder assento no clube, eu passaria pelo crivo da indiferença perante meus companheiros. Falar palavrão perante pai e mãe – ou responsável deste posto, coisa que era avaliada pelos fundadores – era infração derradeira e atingia no âmago a finalidade da nossa agremiação.

- O que dissestes?

- Na... da.

- Olha menina, eu não te quero mais falando essas coisas. Onde ouviu isso?

- Eu...

Com os olhos a me comer começando pelas vísceras, ela estava justamente cravando em mim a mortalha da delação. Era matar ou morrer e eu nunca fui boa de colecionar corpos. Passamos alguns minutos, que pareciam eternos, olhando uma para outra. Eu de visor invisível e ela com uma palmatória entre os cílios. Na infinitude daquilo, ouvi as risadas, as conversas e recordações que jaziam fedorentas diante do derradeiro fim. Praticamente chorei em silêncio. Até que...

- Não vai falar? Então tá bom. Vamos fazer o seguinte: a partir de hoje estás de castigo. Não quero saber de ti lá embaixo. Não quero gente gritando por ti na janela. Vais ficar em casa esse fim de semana para que a senhorita repenses essa história de... de... Ouviste?

- Sim.

- Então deixa eu voltar pra cozinha que estás atrasando o jantar.

Sozinha no quarto, tentei repassar, sem lágrimas, os minutos anteriores. Soluçava em silêncio. E enquanto a noite parecia preguiçosa em cair, ouvi os gritos lá embaixo: estava na hora da queimada mista, coisa que só acontecia de vez em quando. Talvez fosse bom. Assim, eu não chegava em casa toda dolorida por conta das arremessadas do time adversário ou caia e ralava o joelho pela décima vez. Suspirei.

Depois daquele dia, diminui as decidas. Não pelo castigo, mas pela vergonha que me consumia em navalhadas. Não sei se o Clube descobriu meu delito, mas daquele dia em diante eu nunca mais participei daquela roda de saudosos e suas clandestinas cotas de palavrões. E um dia, acordei esquecida; não lembrava de rostos, vozes e nem se tínhamos um sinal secreto. É que, sem querer, eu havia crescido.