A jornada

Fazia desenhos na borda da escrivaninha para descarregar a falta de versos, doença crônica que nem doses devastadoras do seu diário café amargo davam conta diante da inabilidade que ela tinha de imaginar.

Em uma metalinguagem confusa, ela pensava em resgatar sua serventia a todo custo, mas não chegava nem perto da concordância promissora de se narrar sobre folhas mortas no caminho de casa ou até a cerca da incipiente feitura dos cinzeiros. Ao engatar um vocábulo solto, na tentativa de (re)vida, era como se a ingrata insuficiência a consumisse, devorando seus aconchegantes anos como escrevente risonha e em concordante subserviência.

Ela lembrava com saudade e melancolia do tempo em que papéis avulsos ou inusitados preenchiam suas mãos de forma plena como se fossem as roupas que vestia. Como cúmplices, estes pequenos pedaços de vida presenciavam a nata e irretocável incursão das histórias que ela geria, de modo obstinado, desde os doze, quando alinhou seu primeiro rabisco.

Pensava na vida que a havia endurecido, em suas malfadadas sessões de incerteza. Sem aquelas cores, nunca mais tinha chegado ao final de uma oração que valesse sem voltar, sem sobreaviso, aos desenhos de telefone, soltos e cheirando a descarte.

Apesar da certeza de sempre ter existido os percalços, fechar uma lágrima ou emoção corriqueira com parágrafos já não era mais seu melhor desfecho. Consciente disso, ela se calou.

Pouco a pouco, perdeu a leveza dos dedos que, já doloridos, eram máquinas malcheirosas de produzir ofícios, combinação infeliz de vocábulos e enferrujadas costas recostadas na sarjeta do mesmo, o mesmo “mesmo” que ela um dia chegou a combater com juventude.

Havia fórmulas para voltar. E, um dia, meio desgostosamente, ela iniciou.

Primeiro, voltou a ler na rua. No auge das suas escrituras, ela tinha o hábito quase mortal de atravessar o mundo com os dois olhos grudados e a atenção alugada. Não era, de fato, o mais amistoso dos meios, mas sua vida vivia em tráfego e não havia tempo ou esperança de encontrar um recosto tranquilo.

Começou com bulas, anúncios em outdoors, jornais que pegava de estranhos, finalmente, livros e uma parada vespertina no sebo ou biblioteca mais próxima. Inaugurou suas mãos com os olhos e passou por Camus, García, Huxley. Até que um dia, já embriagada com dizeres de estranhos, resolveu voltar.

Quando pegou a caneta, ela tremeu. E de novo, e de novo. Contornou a escrivaninha com fita crepe e catou papéis avulsos para as horas de imaginação. No começo, eram apenas histórias pueris, de extermínio fácil. Mas, aos poucos, as mesmas histórias ganharam consistência, não inata, mas conquistada.

À beira da baia, ela sentiu um vento amistoso embaralhar-lhe os cabelos. Ela sorriu. Sua bolsa, amontoada de pequenas histórias vivas, já não tinha o peso de antes, mas também não era leve como as revoadas escrituras da meninice. Apesar de não ser mais a mesma, ela se sentia bem com a nova condição. Agora, ela podia, quando quisesse, escrever ou simplesmente imaginar.