Santos Dumont
Meu querido bairro Padre Eustáquio, babel de tipos e figuras, apelidos de toda ordem , mas boêmio sem derramar necessariamente qualquer líquido etílico. Tinha o macarrão, o coxinha, o anão, o narigudo, o gordo, o cepacol ... Comer na lanchonete Casal 20 era o filé mignon pra qualquer um. Valia a pena juntas as pratas durante a semana.
Por algum tempo, enxerguei ser metáfora de mim mesmo ao crescer nas cercanias dos muros do grupo Dom Jaime. Imitava a vida reinventando minhas brincadeiras, colando com durex as pilhas para fazer o pirata do espaço ou jogando botão ao lado do guarda-roupa do quarto da única irmã. Casa de múltiplos irmãos, casa que comia galinhada, pudim de pão e tomava chá de erva cidreira no meio da tarde.
Pelas quadras do conjunto Santos Dumont, eu podia ser o Sócrates ou o Zico. Até o Éder, mas minhas canelas, ainda sem pelagem, faziam-me cavaleiro do improvável nas peladas encharcadas do futebol com bola dura de doer o dedão do pé. O tampão invariavelmente era arrancado em um chute descalço e eu pisava leve até a nova pele ficar durinha de novo.
Jogávamos também o banquinho, improviso travesso de bater bola nas pracinhas do bairro e ficar apreensivo se a velha doida jogava água quente na molecada . Teve também a mulher que ficava no canto da sala pra esperar a bola agarrar nas grades e enfiar dolorosamente a faca na nossa dente de leite.
O ratão e o cebola eram como a turma toda: gente de primeira categoria, irmãos, sendo o primeiro, o mais velho, metido a galanteador das moças desavisadas. Ora estava descendo a rua Ingaí com o seu skate, ora estava pelos vãos do prédios suspenso pelas pontas dos pés e o cabelo boi-lambeu todo bagunçado. No mesmo lugar, vez ou outras, eram vistos vestígios das revistas de mulher pelada na cena do crime. Todos cúmplices. Naqueles tempos ficamos chocados com o acidente do ratão que foi atropelado em seu skate e teve que colocar platina nas duas pernas. Acidente que o converteu imediatamente em celebridade pela façanha de escapar com vida e em, digamos, uma espécie de homem biônico – ou adolescente – sorridente como ele só ao encher o peito para contar da sua façanha. Conseguiu ficar mais eufórico do que já era.
O lesa, traquina como ele só, feriu a nossa meninice quando, no alto do pé de manga da escola, perdeu o equilíbrio e se estatelou fatalmente no chão. Matou todo mundo um tiquinho naquele dia.
O Sesc da rua Santa Quitéria era como a reunião das maiores delícias para qualquer molecote: misto quente, piscina, futebol e morena de biquíni. Não havia muita loira como hoje em dia. Estava começando a moda das mulheres passarem água oxigenada nos pelos e tinha até óleo de abacate pra pegar aquele bronze.
E quando eu me desencontrei da minha mãe e tive de voltar de sunga pra casa, vindo do Sesc, e ainda esperar a brava matriarca na entrada do prédio. – Ô, dona Yolanda, o menino da senhora tá ali há um tempão todo encharcado. Era a senha pra fugir da correia de sola ... A vara de marmelo era do tempo dos irmãos mais velhos e ardia muito pelo que eu ficava sabendo ... eu ainda peguei um restinho da época de ficar ajoelhado no milho ...
O conjunto Santos Dumont envelheceu nos seus maneirismos, do gosto que dava uma família correr o olho na outra para que ninguém de fora fizesse mal pros meninos... os amigos de outros tempos meio que branquearam os cabelos, assumiram compromisso, enfim, enterraram suas ingenuidades na cova da vida adulta.