Sobre despojos e honra
Silenciosamente, ele escreveu. O corpo gordo e citadino rabiscava no chão palavras indizíveis, dadas as condições, mas audíveis o suficiente para deixar pés em cadência, colher sensibilidades gratuitas e coletar um meio sorriso que surgia quando o abarrotado zumbido de carros cessava.
Ao meu primeiro margear de dentes, ele rebolou. Era como se voltasse os olhos à procura da resposta desejada: algumas migalhas que não encontrou na naturalidade de sua despensa. Ele havia aprendido que risco na boca era o início da jornada, mas dentição à mostra era caso encerrado.
Alargou o pescoço, equilibrando-se na exatidão de seus braços imaginários, e ensaiou duas ou três manobras gatunas, com o propósito de amortizar minha ocular dureza. Sem sombra de dúvidas, ele sabia como fazer o jogo. Virou para cá, para lá, aproximou com coragem e escreveu com maestria o seu preço: comida.
Na bolsa, minha marmita retumbava: um punhado de arroz, regados de farofa e uma proteína vencida que, de tão insignificante, não se merecia nominar. Era modesto, mas era meu. E o incessante escrevinhar da ave começava a torná-lo um banquete digno de espadas riscando, e sangue respingado na roupa e na honra.
Nauseada pela racionalidade conspiratória de seus movimentos, decidi virar o rosto para que, envolta em uma gratidão besta, não me entregasse assim, tão facilmente. Devo confessar que a disputa era difícil. Enquanto nos olhávamos, ele riscava o cimento em um ritual frenético de simpatia forçada e, com manobras fugidias, eu demonstrava desdenhosamente que ele era apenas um caso de saúde pública, um desequilíbrio ambiental.
Mas mesmo com todo PhD barato sobre questões assépticas, eu estava em clara desvantagem. Afinal, o que um xingamento mais elaborado poderia fazer a um pombo? Tremendo a sobrancelha em sobressaltos, eu decidi acabar com aquilo.
Acendi um cigarro, soltei culhões de nicotina no rosto do bicho e decididamente levantei. Olhei para os lados, pensei em correr, mas imaginei como seria vexatório denunciar as artimanhas da ave para surrupiar meu almoço.
E no auge da agressão, quando minha veia da testa clamava em soluços por morte, ele, sem ensaiar mais ameaças, se foi. Com uma consciência anos-luz da minha, ele rebolou em préstimos uma última vez e, com alguma dignidade, misturou-se aos outros, perdendo-se no estampido dos canos e na certeza de ser apenas pombo.