Ária
Em meio à arritmia do volante e o soluçar dos apressados, há quem diga que este foi o mais belo dos passos, o mais aprisionado dos desejos. Não se sabe há quanto tempo. Eu mesma perambulava despercebida misturando-me com o tráfego e, de um sobressalto, me vi envolta naquele som que parecia ter sido feito por encomenda.
Em uma cadeira simples, um senhor de cabelos ralos dedilhava com juventude um ritmo inebriante. Todos os dias, curiosos espiavam com ouvidos em passarada a leveza do músico que, sem cobrar cachê, embaralhava os compromissos, nos fazendo esquecer e lembrar.
Já me peguei, cinco pés adiante, construindo em poucas cenas a vida deste sujeito. Imagino um bocado de música estalando sorriso em amigos, solitários, em anônimos e raparigas. Ao pé da mesa, mostrava a voz e, com a concentração de um franciscano, construía nova melodia sem ninguém ao menos notar, de tão viva.
Quando era menino, pensava eu, este senhor deveria ser aluno levado. De pouca paciência, como todo sujeito talentoso, ele entendia de tudo menos de prazos, processos e castigos. O que lhe apetecia, longe das convenções, era criar equações colorindo palmatórias, era transformar a sintaxe em sexteto, cifra de rua, riso de menina.
E como era apaixonado. Bastava um terço do dente entre risos perfumados para esquentar sua viola de tanta inspiração. Mas era acanhado. Seu primeiro amor foi o último e é para ela que o tal artista dedilha, religiosamente, sua cantiga, que atravessa a saudade e se confunde com a vida já ausente.
Se ele teve filhos, alguns. Nascera em uma família grande, cheia de “coisas da vida”. Seus poucos pequenos, cerca de quatro, colocaram naquele sujeito momentâneos asseios e um medo constante de não ter para dar, não ter para amar. Por isso, naqueles anos, largou a viola de canto e ninou João, Núbia, Zé e Maria com o abafado som do compromisso, abrindo e fechando sua loja de artigos.
Ensinou-os a rezar, a ir à paróquia de Santa Teresinha e a agradecer o pão e a carne, habilidosamente preparados pela mulher. Se perguntado sobre o silêncio e a trabalheira, ele diria aos gracejos que isso tudo era coisa passageira. A vida, ele dizia, é o tanger das melhores e mais difíceis melodias.
Acredito que ele tenha começado a trabalhar muito cedo, enredando seu jeito menino ao tumultuado fato de crescer. Faltava-lhe televisão, comida e roupa boa aos domingos. Muito cedo perderia amigos, vítimas de algum pregão incompreensível. Foram tempos indizíveis aqueles. Mas, quais nunca o serão?
E entre os acordes que salpicam, foi possível ver seu semblante de ausência, de acinzentado outono, do inverno, da solidão de seus 90 anos. De frente para porta entreaberta, ele chama seu público para falar em silêncio, compartilhando sua falta e acalmando corações atarefados. Mais que seu dever, ele sente ser seu propósito. Sempre o foi, mesmo quando a vida enferrujou-lhe as cordas.
Quando dobrei a esquina, misturei-me ao mesmo e segui, esperando com ansiedade o entardecer e as portas abertas novamente. Parece que o conheço... É que já ouvi ao pé da mesa aquele mar revolto, as arestas que respigam e, em minha juventude, eu já chorei pelo amor ausente. Quem sabe aquele bandolim sempre houvesse existido, mas faltou um convite para que eu pudesse lhe escutar.