Dia Chuvoso

Acordou. Suas frágeis pernas lenta e dolorosamente deslizaram pelos lençóis da velha cama de casal em que há tanto tempo dormia sozinho. De tempos em tempos pensava em comprar uma cama nova, que não entortasse sua coluna cansada, que suportou tanto por tantos anos. Mas sempre chegava a conclusão de que não podia. Era lá que ela dormia, e foi lá onde ela deixou de acordar. A cama o lembrava dela. Ele gostava de lembrar dela.

A passos lentos foi à cozinha, sua mão apoiada na parede desbotada, seus dedos roçando em pequenas lascas te tinta seca que se soltavam da parede, seus chinelos velhos deslizando sobre o chão sujo. Comeu uma maçã meio amarelada, mas há tempos ele já não se importava com o gosto do que comia. Deu uma mordida enquanto olhava pela pequena janela empoeirada. Lá fora, o céu cinza despejava uma chuva torrencial. As ruas, também cinzas, estavam vazias, todos estavam ocupados demais com seus afazeres, ou entretidos com seus entes queridos, para ensoparem-se cruzando aquela rua.

Sentou-se no pequeno sofá surrado, tudo o que lhe restara foi sentar-se no pequeno sofá surrado, dia após dia, assistindo sozinho às reprises dos mesmos enlatados e aos repetitivos programas cujos temas pouco importavam agora, tanto quanto não importavam antes. Pegou o porta-retratos de madeira escurecida que estava no criado mudo, também de madeira escurecida, olhando fixamente a foto que estava nele.

A foto, desbotada, o mostrava jovem. Com sua mulher. Com seus filhos. Há quanto tempo tirara essa foto? Há quanto tempo tirara a última foto com sua mulher antes dela ir-se para sempre? Há quanto tempo tirara a última foto com seus filhos? Há quanto tempo se encontrara pela última vez com seus filhos? E seus netos? Com que idade estariam? Eles se lembravam de seu avô? Eles se perguntavam como era sua avó?

Com o porta-retratos em uma mão e a maçã em outra, ele encostou-se ao sofá relaxando. Ao se cansar de olhar a foto, passou a admirar o velho relógio repousando em cima da televisão. O relógio fora um dos presentes de um dos aniversários da época em que ele ainda os comemorava. Um relógio branco, com detalhes em relevo talhados a mão, feito de madeira boa, resistente, durável. Mesmo tantos anos depois ele continuava branco como novo. Era um lindo relógio. Olhava com atenção seus ponteiros deslizando lentamente em seu caminho, através dos números romanos dourados pintados sobre um fundo bege.

E então o relógio parou.

A cabeça se inclinou pra trás repousando na cabeceira do sofá.

Seus olhos se cerraram.

Sua boca se abriu poucos centímetros, sem lançar nenhum som.

O porta-retratos deslizou pelo seu peito e caiu ao seu lado.

A maça mordida rolou pelo chão.

O ar deixou pouco a pouco de circular em seus pulmões.

Seu coração parou.

Pensou nela uma última vez.

E lá, no sofá, ele ficou, inerte. Lá fora, a chuva ainda caia. Lá fora, um carro cinza passava solitário pela rua. Lá fora o vento soprava as pesadas gotas em direção à janela. Em algum lugar seus filhos seguiam tranquilamente suas vidas. E ninguém percebera que desde aquele momento ele não existia mais.

Felipe Santos Cunha
Enviado por Felipe Santos Cunha em 05/02/2013
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