UMA TRANSPARÊNCIA BEM TRANSPARENTE

Não sei por que as crianças gostam tanto de mim! Olham como se eu fosse um pirulito e me adotam como um parente...

O menino estava completando um aninho. Fora convidada para a festa marcada numa sexta-feira e é claro, naquela sexta que você está estropiada de tanto trabalhar e suportar todos os aborrecimentos que nem cabem num dia só... Com aquela vontade de que "tudo acabe em barranco para morrer encostada".

Procurei por uma mesa num canto mais sossegado, mas não havia escapatória. Crianças de todas as idades ferventavam pelo salão. Conclui que elas não nascem, proliferam.

Sentei-me e logo um casal conhecido juntou-se a mim. Não demorou dois minutos para que a filha me agarrasse e nem dois segundos para que eles se teletransportassem.

_ Tia Inêz brinca comigo?

_ Hoje não lindinha, estou muito cansada. Olhe quantos amiguinhos, vá brincar com eles!

_ Não quero, só quero brincar com você... de pegador!

_ Já te expliquei, estou muito cansada mesmo! Desce do meu colo, vou te levar para a sua mãe!

_ Não, não e não, quero ficar com você!

Esta afirmativa tão contundente veio acompanhada de uma gravata de dar inveja em qualquer lutador de jiu-jítsu. Teria que pensar em alguma estratégia antes que sufocasse...

_ Olhe, vou brincar só uma vez, combinado? Vamos lá para a varanda.

_ Eba! Vai ser pegador de quê tia Inêz?

_ De esconder... você se esconde... bem longe... eu vou contar até cem, depois te procuro.

Pronto, livre poderia voltar à mesa e sentar um pouquinho, pensei.

Você acha que foi uma maldade?... Não, apenas um ato de sobrevivência...

Tinha este forte álibi para me defender da própria consciência, mas o castigo veio à galope.

Assim que a menina correu para um lado, fiz a mesma coisa para o outro e só escutei o barulho da pancada...

Foi uma trombada com aquela parede de vidro temperado, transparente, translúcido, super limpo, e sem nenhum aviso de que estava ali.

Alguma coisa veio escorregando. Peguei, aquilo se parecia com meus óculos. Passei a mão pelo rosto, o nariz ainda estava lá, porém não reconheci bem o seu formato. A boca ficou anestesiada, mas os dentes começaram a latejar.

Demorei um pouquinho para chegar até a mesa, o chão estava meio bambo.

Algum tempo depois, os pais voltaram. Perguntaram-me o que tinha acontecido com os óculos? Respondi, segurando os dentes:

_ Baiu, bisei neli.

Em seguida veio a menina, comemorando por não ter sido achada:

_ Vamos brincar de novo tia Inêz!

_ Dão..... indinha..... êu nuca bais vô bincá, biu! Shãu.