A TARIMBA DE ILARIE

Dona!

Essa vida é muito engraçada mesmo!

- Por quê?

A senhora, veja que judiaria, veja que coisa desigual!

- O que é desigual?

A senhora é bonita – eu sou feia...

A senhora é rica - eu sou pobre...

A senhora tem cabelo bom – eu tenho cabelo ruim...

A senhora manda eu obedeço...

A senhora paga eu recebo...

Seu filho dorme num berço de rico e o meu dorme numa tarimba...

-Tarimba, o que é isso?

Tá vendo dona, a Senhora nem sabe o que é tarimba!

Tarimba é um pedaço de madeira que o pobre usa para servir de cama, ai a gente coloca uns panos, e dorme como se fosse colchão...

- Uh! Então você e seu filho dormem nessa tal de tarimba?

Claro nem dona, a gente é pobre, mas, pelo menos temos uma tarimba para dormir!

Mas a senhora pode ir lá agora, e vai ver como tudo é limpinho, mas, é numa tarimba que nos dorme...

Qualquer dia a senhora vai conhecer minha casa. Fica lá no Morro do Café... ai vou servir um café num copo de requeijão, desses que a senhora joga fora aqui na sua casa, mas vai ser café passado na hora...

Lá no morro é assim, nada acontece de surpresa, tudo é rotina... nos liga o rádio; quando uma vizinha quer falar com a outra, dá um grito da janela; é sempre tudo igual, só quando os homem resolve subir o morro, então nos se enfia dentro de casa e fechamos as portas...

Quando a senhora for lá, me avisa, que eu digo pra avisar o patrão, que vai uma bacana, minha chapa – e eles cuidam do seu carro... Não vai se assustar, nos lá do morro, não faz mal pra ninguém.

Lá em cima, tem até alguns pivetes que descem o morro pra fazer avaria pros bacana aqui em baixo, mas que vale isso, alguns filhos de bacana também sobem lá pra buscar bagulho... Ai fica tudo certo.

A senhora sobe o morro e vira na casa do pão... Segue em frente e vira a esquerda e depois a sua direita, mas vai devagar, pois as ruas são estreitinhas... Ai vai ver o salão da Nina... Lá, a senhora para o carro, chama pela Nina e pede pra ela apontar a minha casa e ela manda o moleque dela levar ate lá... Ai a mulherada toda vai se moer de inveja, vendo minha patroa subir de carrão na minha casa...

- O qualquer dia chegou...

E como que movida por uma curiosidade e uma espécie de solidariedade fui conhecer a tal tarimba... Dez horas de um sábado, subi o tal Morro do Café com meu Voyage preto... Lugar de chão batido, coberto por um pó fino, vermelho, um calor infernal...

Sobe que sobe morro, vielas e mais vielas, como se na próxima esquina já fosse à porta do céu... Ate chegar ao salão da Nina, mulher de pele escura, cabelos alisados, amarelo ovo, e unhas vermelhas...

- Nina, você poderia me apontar à casa da Varcenia?

Ah dona, aqui não tem nenhuma Varcenia não! Mas ela me deu seu salão como referencia....

- Kakaka! Varcenia? Aqui nos conhece ela como Ilarie!

Ilarie?

Sim, na época da música da Xuxa, ela era criança e descia o morro cantando Ila, ila, ila rie, o, o, o, é a turma da Xuxa que vai dar o seu alo! Ai ficou conhecida como Ilarie...

- Olha dona, se eu me chamasse Varcenia eu ia preferir ser chamada de Ilarie mesmo... Tem cada nome nesse mundo!

Marquinhooooooo!

Leva a dona até a casa da Ilarie...

Marquinhos entram no carro, feliz da vida como se estivesse entrando numa aeronave...

Dona! Esse carro tem radio?

Tem Marquinho!

Então liga na Guararema!

Ok!

Chegamos dona!

Ilarieeeeeeeeeeeeee... tem uma dona aqui que quer falar com você!

Fico parada sem saber o que fazer com Marquinho, mas Varcenia, quero dizer: Ilarie, disse: Anda menino, volta pra casa que tua mãe esta te esperando!

Marquinho, com olhar firme, meio que dizendo: daqui não saio, estica a mãozinha ainda pequena... Logo entendo o recado. Abro a bolsa e dou cinco reais para o moleque, que desce o morro com a maior alegria...

Aquele sorriso largo, já conhecido, me recebe com uma criança no colo, com um pedacinho de pano enrolado na mão, fazendo de cheirinho...

Ai Dona!

Não acredito, a senhora é mesmo estranha... como pode subir o morro, sujando seu carrão... Parece que a senhora não pensa... Credo, tanta gente querendo sair daqui e a senhora querendo conhecer o morro...

Vamos entrar, mas, por favor, não vai reparar, é casa de pobre, mas vai ver que é tudo limpinho...

Era uma casinha simples, pequena, dois cômodos... logo, numa virada já pude ver a tal tarimba... era como se fosse uma tampo de mesa que servia de cama...

Tomei o tal cafezinho, passado na hora, no copo de requeijão... E só vinha em minha cabeça à seguinte frase: - seu filho dorme num berço e o meu dorme numa tarimba...

Voltei pra casa... de certa forma, até feliz. Mesmo com tanta miséria, tudo parecia limpinho asseado. Exalava no meio do que eu chamava de pobreza, uma espécie de conformidade, de tranqüilidade, e por segundos, parecia que era eu, quem tinha demais e não ela de menos...

Na segunda feira, ainda emanada pela simplicidade complexa do Morro do Café... fui ate as casas Bahia e comprei um quarto simples de casal, e um berço de bebê, com uma cômoda, e os devidos colchões...

Naquela época, não havia cartão de credito, mas as pessoas tinham credito com facilidade. Então fiz tudo em dez vezes no carnê.

Na segunda feira mesmo, assim que Varcenia, agora Ilaire chega ao trabalho, digo que comprei um berço para o filho dela, e que agora o filho dela não precisaria mais dormir em tarimba.

Ilaire me olha com aqueles olhos esbugalhados e com um sorriso ainda maior de felicidade - dizendo que eu era o anjo que ela precisava na vida...

Eu mandei entregar no Morro do Café, no sábado seguinte, pela manha...

Ilarie trabalhou a semana toda como se fosse um passarinho que abriram a porta da gaiola, cantarolando, e cantarolando... Em alguns momentos ela dizia...

Dona! Só quero ver a cara da mulherada vendo o carro das casas Bahia parando lá na minha casa... Vão pensar que é o caminhão do Faustão!

Passei a semana imaginando o sorriso largo de Ilarie recebendo, alem do berço, o quarto de casal e a cômoda... Imaginando com seria a carinha dela na segunda feira quando chegasse para trabalhar...

Sábado, domingo, parecia que as horas não passavam...

Chega a tal segunda feira e a partir daquele dia descobri o quanto precisamos aprender com as pessoas e o quanto tudo é muito relativo.

Toca a campanhia, e no lugar de Ilarie, me surge uma moça que eu não conhecia, com um bilhete na mão ... escrito da seguinte forma:

Dona eu ia trabaia para comprar um berso pro meu fio, mas a senhora me deu muito, mas que um berso, ganhei um jogo de cuarto completo e imagine, a senhora que foi comprado nas casas baia. Então agora não vo precisar mais trabaiar e mando minha amiga Catarina por que ela também mora no Morro do Café e dorme em tarimba...

Varcenia

Olhei para a menina, e seu lindo sorriso, de dentes branquinhos me apresentavam a carinha da felicidade...características que parecia ser do povo do Morro do Café. Agradeci o bilhete e logo em seguida olhei para ela e respondo - no momento, não estou precisando de ninguém, para trabalhar na minha casa... tentando ser educada saiu de minha boca ainda com voz embargada... Quem sabe numa outra oportunidade!

Aquele sorriso largo ficou meio amarelado, se virou e foi embora.

Fiquei ainda meio atônita, sem respostas, sem entender, ou já entendendo tudo... com suspiros de indignação.

A situação era tão clara e ao mesmo tempo tão patética que o tempo foi passando e arrumei outra pessoa para trabalhar, mas dessa vez jurei que não pegaria mais ninguém do Morro do Café, pois pelo que aprendi, todos dormem em tarimbas.

Alguns meses se passaram... Um dia, caminhando na praça, escuto alguém cantarolando ... ilailarie, o, o ,o... num lance repentino penso... conhecer essa voz de algum lugar...

Quem eu encontro, saltitante e faceira, chupando um picolé? Aquele sorriso largo com cara de felicidade eterna.

Dona!

Quanto tempo, como a senhora esta?

E o Gugu, aquele lindinho, ai que saudades daquele danado!

Eu estou bem e pelo que vejo você continua feliz...

Ah dona, eu já era a pessoa mais feliz do mundo, agora, dormir em cama e ver meu filho num berço me deixa mais feliz ainda!

Não me contive, coloquei minha mão na cintura e exclamei?

Que bonito papel você fez!

Te dei uma cama, pois teu filho dormia numa tarimba e o meu num berço. Você me conta sua historia e meu coração de leão, não se dá nem o trabalho de ir nos moveis usados... te compro coisas novinhas, que talvez você jamais pudesse comprar, e você ingrata me deixa não de um dia para o outro?

Dona a senhora esta louca?

A senhora chama minha atitude de bonita?

Bonito fez a senhora!

Foi nas casas Bahia, comprou cama pra mim e pro meu filho,comprou ate guarda-roupa, a vem me dizer que eu fiz bonito?

Quem fez bonito foi a senhora!

Eu fiz foi muito feio. Mas que vale isso, daqui a dez anos a senhora nem vai lembrar de mim...Fique esperta dona!

Pelo menos agora a senhora já sabe o que é tarimba...

Num silencio ensurdecedor, vejo Varcenia, se afastando com seu gingado cantarolando...Ilailarie, o, o, o,...

Albertina Chraim