LEMBRANÇA 12
Lá se fora ele. Não tive aviso prévio, nem chance de negociação. Só não conseguia me conformar em não ter havido despedidas. Lembrava-me que no dia anterior, bem a tardinha, deu adeus para o curió com quem tanto conversava como se este nem estivesse engaiolado fazendo parte do mundo dos humanos. Ele sumiu na esquina junto com os dois cachorros: um era o Mike e o outro era o Sheike. Um marrom, um branco. Um austero, exibindo a força da juventude, o outro com o olhar humilde de quem já viveu o bastante para enfrentar o risco de ser valentão. Assim desapareceram: um levando o outro. Ele carregando os cães e os cães carregando uma alma.
Minha mãe varria o quintal com a vassoura feita de mato olhando para a roseira e admirando como estava cheia de botões da flor. Era uma visão maravilhosa junto com os primeiros raios de sol. Sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Eu estava na cama mas pude ouvir as palmas no portão.
_ O seu Duardo está estendido no chão do depósito, no meio dos sacos de cimento, e os cachorros não deixam por as mãos nele para ajudar.
Era o motorista de um dos caminhões do depósito de materiais de construçao que exibia a calça rasgada cheia de sangue e uma mordida na perna. Minha mãe entrou pela porta da sala gritando por ajuda. A Maria Helena pulou do beliche e sem enxergar enfiou uma mini saia da Cidinha – não houve espaço para seus pudores naquela hora. Eu gritei um "não" e enfiei a cabeça em baixo do travesseiro, fechando os olhos na esperança de acordar dum pesadelo. O rádio estava ligado bem acima da minha cabeça e as músicas se misturavam com os vizinhos chegando fazendo perguntas chorosas. A Diva, vizinha da frente, chorava mas dizia que não havia de ser nada. Era. Jamais acordei.
Não me lembro da Cidinha nem do Niquinho. Não tenho certeza. Acho que estavam trabalhando.
Tentaram salva-lo, mas enquanto a Maria Helena segurava sua cabeça no banco de trás do carro não sei de quem, igual criança marota evadiu-se para aquele mundo tão familiar em suas estórias.
Foram momentos conturbados nos meus doze anos. Não sabia de nada. Ainda brincava com bonecas e devaneava no "meu corrimão de laranja lima". Plantava flores enquanto o Vietnã explodia. Não sabia de nada. Procurava formas nas nuvens enquanto gente sem nome era assassinada nos porões da ditadura por causa de um ideal.
Vinte de abril de 1974, um sábado lindo de sol quente, como ele próprio havia profetizado, não sei se por brincadeira ou por obra daquele mistério que o fazia diferente dos outros pais. Quanta gente, quantos amigos passando lista para arrecadar ajuda para nossa família. Uns entregaram o dinheiro, outros esqueceram. Um irmão do meu pai que eu não lembrava nunca de tê-lo conhecido. Sei lá, criança não presta atenção nas coisas mesmo. Havia uma lágrima nos olhos dele que a Cidinha enxugou com um lenço. Onde será que foi parar aquele lenço? Acho que foi lavado assim como seus olhos foram enterrados. Nunca mais. Eu não sabia de nada. Os botões de rosas se abriram e foram com ele. Não sabia de nada. Até quase morri de rir quando uma vizinha trouxe um chá para me acalmar decorado com uma pulseira. Um desses copos que ficam de enfeite em cima do armário e a gente esquece coisas dentro igual se esquece pedaços da vida. O curió morreu de tristeza uma semana depois. Acho que foi solidão por não ter com quem conversar na sua cela vazia. O Mike se jogou em baixo de um caminhão. O Sheike, sempre o mais ponderado, morreu de velhice e foi a ultima testemunha muda dos últimos momentos do meu jovem pai.
Assim sou eu. Não é de tudo que me lembro porque nunca tive uma memória muito boa. Eu não sabia de nada e hoje sei menos ainda. Quanto mais o tempo passa mais o meu coração chora. Acho que o que eu queria mesmo era atribuir a ele a triste tarefa de me ensinar a saber. A gente tem dessas manias, é a desculpa pela própria ignorância.