UM DESERTOR DA BALAIADA

Por: josafá bonfim

Desde sua fundação em 1854, a cidade de São Luís Gonzaga do Maranhão sempre experimentou um estilo simples e pacato de viver, e não por acaso. Com a estrutura montada no setor primário, fundamentalmente na atividade agrícola, tendo como maior empregador o incipiente governo municipal, não teve como evoluir, trilhar numa economia aquecida, e assim, alçar o sonhado desenvolvimento .

Sem investimentos nos setores secundário e terciário que pudessem ocupar mão de obra, o profissionalismo liberal terminou sendo o meio recorrente de ocupação da população ativa da cidade até o final da fase dos governos militares. As demais ocupações ficavam voltadas ao pequeno comércio e a atividade rural. Assim girou o processo socioeconomico do município por inumeras décadas, terminou na economia estacionária em que se encontra.

Pra quem tencionou se projetar sócio-culturalmente nessa urbe, sempre enfrentou dificuldade de toda ordem. A vida pra essas bandas nunca foi fácil, desde que dinheiro passou a ser moeda de troca e a vila do velho Machado passou chamar-se Ipixuna e por último São Luis Gonzaga.

Contudo, muitos procuraram esse lugar para tentar a vida. Alguns de regiões próximas e outros de lugares distantes; pra cá vieram misturaram o sangue e ajudaram a formar o perfil socioeconômico dessa gente.

Para ilustrar o assunto, fomos buscar nas reminiscencias um personagem que teria vivido nessa região desde os primórdios da fundação da vila de São Luís Gonzaga: chamava-se Miguel Gaita, era pescador, botava roça e nas horas de folga gostava de tocar gaita, daí o codinome.

Não se tem dados concretos sobre seus traços físicos, nem de sua verdadeira origem. É possível aqui ter chegado, antes da mudança da sede da vila para a localidade Machado, e tenha preferido ficar na morada incicial. Vivia solitariamente numa tapera fincada nas barrancas do Mearim, nas proximidades da Santa Filomena, onde cultivava a lavoura de subsistência e a prática da pesca artesanal.

Miguel Gaita trazia um segredo que a bem poucos revelou e só chegou ao dominio público, anos após sua morte. Segredo, este, que o trazia à proximidade de fatos relacionados a episódios que marcaram a historiografia nacional.

***

Os anais da história do Brasil, registram em vasto material didático, que vários conflitos ocorreram entre brasileiros e portugueses pela autonomia do país. A grita contra a centralização política do poder imperial de soberania portuguesa e as precárias condições socioeconômicas por que passavam as classes subalternas, geraram vários conflitos na fase denominada Regencial (1831 a 1940), que ameaçaram a unidade nacional, levando o país ao risco da divisão do seu território.

Os gritos de liberdade expressos nas revoltas ecoaram na maioria das províncias. Destacando-e: a Farroupilha no Rio Grande do Sul, a Sabinada na Bahia, a Guerra dos Mascates em Pernambuco, a Cabanagem no Pará e a Balaiada no Maranhão. Esta última, foi uma das maiores insurreições ocorridas durante o Brasil Império, com duração de 1838 a 1841, e precisou da intervenção do poder central para ser finalmente subjugada.

A revolta da Balaiada eclodiu no interior do Maranhão, e alastrou-se até as províncias do Piauí e Ceará. Os líderes desse movimento eram gente do povo, como os livros escolares contam, a exemplo de: “Balaio”, Negro Cosme, “Coque”, “Cara Preta” e o índio Matruá, todos clamavam pela liberdade, contra a discriminação e repressão que as classes inferiores sofriam.

O movimento teve início na localidade Vila da Manga, próxima a vila e hoje cidade de Vargem Grande, quando o vaqueiro Raimundo Gomes invadiu a Delegacia de Polícia e soltou alguns indivíduos que estavam presos, dentre eles, um irmão seu. (observe-se, que alguns desses detentos, eram jovens que seriam levados à força pelo governo, para servirem como soldados nas batalhas contra revoltas pelo país a fora), vítimas dos famosos “pegas”.

Com a chegada das tropas do governo para reprimi-los, os revoltosos da Balaiada se espalharam levando tensão a lugares como: além de Vargem Grande; Itapecuru, Chapadinha, Caxias, Brejo, Barra do Corda. Icatú , Codó, Miritiba, Grajaú, Alcântara, São Luís, dentre outros.

Os revoltosos chegaram a controlar quinze vilas importantes da orla marítima, faltando dominar a capital, São Luís. Conseguindo dominar Caxias, a segunda cidade da província, onde instalaram uma Junta Governativa, conforme registram os anais da história.

As lideranças do movimento já não se entendiam e tinham dificuldade de organizar as ações.

Foi quando o governo enviou numerosa tropa militar para a região, comandada por Luís Alves de Lima e Silva, que debelou definitivamente o levante, vindo a partir dessa conquista, receber o título nobiliárquico de Duque de Caxias, que o notabilizou para sempre.

***

Mas deixando os aspectos historiográficos e retornando ao nosso tema, é a partir da cooptação dos revoltosos, dado o fim dos combates, que entra em cena o nosso personagem, que passaria despercebido como qualquer um camponês, se não tivesse histórias horrendas pra contar sobre os episódios que marcaram os conflitos da Guerra da Balaiada.

Antes da rendição da Balaiada, antes mesmo da chegada das forças militares comandadas por Luís Alves de Lima e Silva, que trucidaram os revoltosos; Miguel Gaita, que no movimento recebia outro nome sem que se saiba qual, escapou de um cerco dos militares nas imediações de Brejo, conseguindo fugir com um pequeno grupo de insurretos. Mais à frente, esse grupo dispersou-se pelos sertões maranhenses. O fugitivo costumava contar a saga, com a precisão de espaço e de tempo, de quem tivera assistido “in loco” os horrendos combates.

Dizia ter conhecimento do assunto, a partir de informações que lhe chegara passada por um amigo de Codó, que vivera como balaio nas trincheiras de Caxias, omitindo dessa forma, sua participação e envolvimento nos conflitos.

Mesmo anonimo e não tendo se destacado no movimento, trazia na lembrança as escaramuças por que passaram os sobreviventes da Revolta sangrenta. Após o desmembramento do subgrupo num trevo em Chapadinha, passaram meses e anos perambulando por várias localidades, terminando este por homiziar-se nas imediações de Vila Velha, sem que nunca fosse descoberto e posto a responder por crime de insurreição.

As razões do isolamento e da maneira reservada de ser estavam justificadas. Certamente esse era o motivo de Gaita ter optado por viver só, sem compartilhar companhia que mais tarde pudesse denunciá-lo à Justiça.

Uma vez quase morre de medo ao imaginar ter sido reconhecido por mercadores que navegavam pelo Rio Mearim. Pouco se expunha fora do seu convívio. As visitas às vilas Velha e do Machado eram raras e breves. Tinha hábitos noturnos e não gostava de se expor em público, dai muitos pensarem que sofria das faculdades mentais. E tirando proveito disto, assim gostava de se fazer passar.

Por arte do inusitado, num instante raro de relaxamento, aceitou convite de dois amigos agricultores de Vila Velha, para com os mesmos levar o produto de suas lavouras para serem comercializados no comércio da vila de Codó, pra onde tinham costume de se deslocar, e os valores de venda eram mais vantajosos que os praticados na praça local.

Ocorre que os companheiros tinham costume de comercializar em outras regiões, enquanto Gaita, não. Prepararam alguns animais de tropa com a carga e arribaram para a região do Itapecuru. Praticamente não existiam estradas, as únicas eram carroçais que interligavam a capital da província às cidades de grande porte. As Vilas eram, na quase totalidade, interligadas por caminhos de tropas, veredas ou via fluvial.

Em Codó, após cumprirem exaustivo roteiro de viagem, tendo vendido seus produtos (azeite de mamona, pele de animais silvestres e pescado seco) e comprado algumas ferramentas e utensílios; deixaram a tropa no pouso de animais e foram se divertir numa taberna existente numa travessa que limitava-se à beira-rio.

Miguel Gaita não tomava bebida alcoólica; seus companheiros, sim. A animação estava boa naquela noitada. Até presenças femininas ocupavam espaço e delongavam assunto na mesa dos visitantes.

Lá pelas tantas, um certo indivíduo com traços de vaqueiro e em visível estado de embriaguez, cobra ciúmes de uma das moças que ocupava assento na mesa dos lavradores. Os ânimos se acirraram , quando um outro elemento, sem se saber de onde viera, resolve tomar partido em favor do queixoso.

O tempo fechou na baiúca e quando deram por si estavam todos detidos, prestando esclarecimenton na chefatura de polícia local, sobre o quebra-quebra promovido na noite anterior.

Os visitantes levaram vantagem no braço sobre seus oponentes, mas pelo fato de serem forasteiros, enquanto os outros trabalhavam com um potentoso coronel Rufino, teriam que identificar suas origens.

Miguel jamais passou tamanho sufoco desde a fuga da guerra. O medo de ser identificado pela polícia e ver desvendado o seu passado, tendo que pagar por incorreção da vida pregressa, consumia-lhe os nervos.

Sendo reconhecido naquela ocasião, só um milagre o livraria da punição severa das leis imperiais.

E o inusitado ocorre. O veterano “balaio” não percebera, mas fora reconhecido por um dos militares de plantão envolvido na apuração dos fatos. Como um anjo oculto, o militar conduziu a apuração direcionando o resultado de forma favorável aos visitantes, e o motivo parecia simples, vez que Miguel e os amigos foram primeiramente molestados e desapontados por seus contendores. Mas não era só essa a razão da ajuda:

Ocorre, que o sensato militar ao fixar a feição em Miguel, lembrara-se de imediato daquela feição. Puxou pela memória e relembrou ter sido salvo por este quando um revoltoso “balaio” tentou dá-lhe o golpe de misericórdia, com um terçado, na dura batalha de Mocambo, vencida pelos revoltosos. A atitude precisa e humana de Miguel, no combate ocorrido ha décadas, raiou naquele instante como uma mão milagrosa. E desta feita, estava assim, retribuído o gesto, e o beneficiário somente agora percebera o motivo da providencial ação, mas mostrou-se impassivo.

Libertos, logo que arrocharam as cangalhas, deixaram rapidamente a terra estranha sem ao menos olhar para trás.

Retornaram ao convívio manso das paragens do Mearim, de onde o antigo revoltoso nunca deveria ter arriscado sair.

E seguiu o ritmo cadenciado da fisgada do anzol, do lanceio da foice, nos acordes melodioso da gaita que alegrou momentos e elevou sonhos, em bravas aventuras nos caminhos apagados do início de um povoamento.

Até que, em certo dia, num dilúvio temporal, fora levado pelas corredeiras do rio, para o descanso eterno junto aos seus antepassaos, desconhecidos daqueles seres distantes, com quem convivera por tempos memoráveis.

Josafá Bonfim, São Luís/MA, 16 de abril de 2011

josafá bonfim
Enviado por josafá bonfim em 01/02/2013
Código do texto: T4118168
Classificação de conteúdo: seguro