Um Ladrão honesto

É quase hora de almoço e depois de uns favaios com os amigos, dirijo-me para casa num ritual quase diário, não tanto pelo aperitivo, mas como forma de escape a uma rotina que diria saturante, não fora este bocadinho em que cada um dá um pouco de si mesmo, num jogo de relações humanas e no combate às preocupações domésticas.

Ali se encontra uma certa comiseração, quando as coisas não correm bem. Ali festeja-se a vitória do nosso clube, brinca-se com o encaixe dos adeptos da facção contrária quando perdem e aprendemos como é difícil mostrar bons modos, quando acontece o contrário.

Ouvem-se os alentejanos com as suas costumadas chocarrices, sobre atavios da cabeça e calçado metálico, sorvem-se as novidades, fazem-se apostas sobre quem ganha o campeonato, conta-se uma anedota, comenta-se a crise e casca-se nos malandros dos políticos que se servem em vez de servir. Enfim, uma terapia de fazer inveja a muitos consultórios da especialidade.

Ao passar em frente da igreja da Memória reparo numa folha A4 colada no vidro da porta de um automóvel. Pela sua dimensão, teve de mim, honras de comentário pouco abonatório ao autor de semelhante publicidade. Porém, conseguiu o efeito a que se propunha, o de chamar a atenção dos passantes.

Senhor Ladrão: Peço-lhe encarecidamente que me devolva o conteúdo da pasta preta. Para si não serve para nada, mas para mim faz muita falta. «POR FAVOR»

Após a surpresa inicial perante tal escaparate, dei comigo a pensar num caso em que fui roubado e para além do valor avultado, a maior preocupação foi os documentos e umas cassetes de filmes caseiros. Os documentos consegui recuperar, pelo que apesar do roubo fiquei agradecido por os terem deitado fora. Restou a mágoa da perda de recordações nunca recuperadas. Daí, eu olhar agora com uma outra atenção, para o desmesurado tamanho do papel. Talvez bem menor do que o valor do produto desviado e a causa de tal exposição.

Acrescentava um número de telemóvel e assinava com o nome de Marco. O nome não me dizia nada nem o modesto automóvel, já com alguns anos, maltratado pelos condóminos da garagem estrela. Provavelmente alguém de outro ponto da cidade, que desta forma alargava a área da sua publicidade e procurando assim atingir a humanidade do ladrão.

É mais tarde, ao comentar esta situação que fico a par do que se passara. Marco era filho de um cliente do mesmo café que eu frequentava. Contara que depois de ter feito as compras mensais no supermercado, com a porta de trás do automóvel aberta, ia descarregando os sacos de compras para o átrio do prédio onde morava, a cerca de dez metros de distância. Na segunda volta da descarga, alguém, sem que ele desse por isso já o tinha poupado do trabalho. Levando juntamente uma pasta com documentos pessoais e uma pen com trabalhos da escola. O filho dizia que não sabia o que lhe fazia mais falta se os documentos se os trabalhos escolares. Andava desesperado após um ano de trabalho para acabar o 12º ano nas novas oportunidades. Todo o trabalho, por burrice dele estava na pen. Senão recuperasse a pen, teria de escrever tudo de novo. Daí o seu desespero.

Duas semanas depois, encontrava-me junto ao balcão do café, gracejando com outros clientes, ao mesmo tempo que saboreava o costumeiro aperitivo. Na altura de pagar, tenho a grata surpresa de ter o favaio pago. Perante o meu olhar inquisidor, o proprietário do café fez-me sinal para o Sr. Augusto.

Como não era costume este tipo de mimo entre nós, apesar de ambos sermos clientes do estabelecimento há vários anos, estranhei e sem pensar duas vezes dirigi-me a ele de mão estendida.

- Então muitos parabéns!..Espero que para o ano o senhor volte a fazer o mesmo que é bom sinal. – Comento, como forma de agradecer e no cumprimento usual ao aniversariante.

O Sr. Augusto sorriu enquanto dizia:

- Desta maneira espero que não.

Fiquei boquiaberto com a resposta do senhor. Sem saber se brincava com a situação, lancei um olhar indagador perante os clientes. O sorriso de alguns, sossegou-me perante uma possível argolada. Naquele instante senti-me perdido, pois por norma, após alguém nos dar os parabéns, agradecemos. Agora dizer; «desta maneira espero que não», soou-me estranho e confundiu-me.

Uma das minhas dificuldades é quando não entendo uma situação como esta, é ficar sem argumentação devido ao receio de me expor ao ridículo. Parece que o cérebro entra numa fase de invernação deixando-me desamparado em situações de possível melindre e sem palavras que se encaixem nestas situações.

- Eu também espero que não… - comentou o Diamantino – mas não quer dizer que o amigo Augusto não faça esta graça mais vezes.

Diamantino um alentejano de quatro costados, homem brincalhão e riso fácil, sempre apostos para contar uma anedota, entrava assim desta forma em meu socorro ao ver o meu mutismo.

- Marco não te diz nada?

- Não. – Respondi.

- O Marco é o filho aqui do amigo Augusto. Aquele a quem lhe roubaram as compras do carro!.. Não te lembras?

- É claro que lembro. – Nesta altura a minha cabecinha deixou o estado de invernação e começou a funcionar em pleno. – Então conseguiu recuperar os documentos?

- Sim, por isso e por o meu filho estar contente é que eu paguei uma rodada ao pessoal.

- Mas conte lá como é que foi… prenderam o ladrão?

- Não senhor!.. foi ele mesmo que os deixou na caixa de correio.

- Caixa de correio?..

- Sim! Mas olhe cá: você não andou nas novas oportunidades?

- Sim. – Respondi.

- Então leia esta cópia da carta que o ladrão deixou com os documentos que o senhor vai entender a alegria do meu filho.

Desdobrei a folha A4 sem entender a relação pelo facto de eu ter andado nas novas oportunidades e o ler a carta. A carta rezava assim:

Meu caro senhor: Em primeiro as minhas desculpas pelo transtorno que causei e angústia de se ver despojado dos seus pertences. Foi com infinita vergonha que fiz o roubo e é com imensa tristeza que assumo que poderei voltar a fazer o mesmo, sempre que vir o meu filho a chorar com fome. Não espero que o Sr. me perdoe, mas que entenda que o desespero pode levar uma pessoa a cometer actos ignóbeis como este.

Junto aos documentos envio-lhe a sua pen que, como forma de aliviar a minha consciência. Numa pasta à parte, corrigi os seus trabalhos e as traduções em inglês. Pode confiar que está tudo correcto, pois os meus conhecimentos me habilitam para isso.

Quando acabei de ler a carta dei conta que uma lágrima teimosamente tentava romper e foi com a voz embargada que disse: «ainda há ladrões honestos»

Lorde
Enviado por Lorde em 01/02/2013
Reeditado em 01/02/2013
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