UM SEGREDO
__ Experimente fio!
Foi assim que comecei a descobrir o segredo de Maria Paula. Tentei abrir a gaveta com a mesma facilidade que ela o fazia, mas... Meu Deus! Eu mal consegui arredá-la por um centímetro usando minhas duas mãos.
Não, ela não é uma mocinha forte. É uma jovem senhora de 81 anos, rosto cheio de rugas, cabelos brancos que insistem em nascer por debaixo dos que estão pintados de um louro escuro e muita alegria pela vida. Ela ria bastante de minha fraqueza jovem e o amigo que me acompanhava tentou em vão abrir a gaveta com tal destreza que aquela mulher o fazia. E o fazia há mais de 50 anos. Ela não é alta e vestia uma blusa branca bem básica, sem detalhes e uma saia marrom bastante comum. Sem adereços e acessórios de beleza, ostentava apenas um brinco modesto e uma alegria contagiante.
Chegou, ao nos ver observando a capelinha da qual zela há mais de cinquenta anos. É singela, embora do início da colonização do Brasil, com altares bem simples, embora haja uma curiosa pintura na parede de frente da nave, que segundo ela, ficou escondida por mais de trezentos anos até que uma reforma na década de quarenta revelou a obra de arte por detrás da tinta branca que a encobria. Admirando ainda o grande painel, o que chamava a atenção naquele momento mesmo era aquele móvel de madeira maciça e quase que grudado ao chão de tão pesado.
Era uma cômoda, na cor branca, bastante antiga, talvez do início da capela dos meados de 1540. As gavetas guardam roupas novas e antigas, cheiros de sacerdotes e de velas, túnicas e estolas que já foram testemunhas de muitas celebrações daquela igrejinha de onde se vê o mar ao fundo da porta principal, logo após o largo do museu do Padre Anchieta, onde o rio Benevente joga suas águas barrentas desafiando o imponente Atlântico. São inúmeras gavetas, igualmente pesadas com dois puxadores que ela manuseia com a maior facilidade do mundo. Confesso que fiquei meio envergonhado de mal conseguir empurrar um pouco a gaveta enquanto ficava vermelho de tanto fazer força. Ela gargalhava, talvez atrapalhando uma senhora piedosa que rezava na segunda fila de bancos.
Por quase uma hora travamos um animado diálogo enquanto ela contava com entusiasmo sobre como era viver naquele belíssimo lugar, respirando ar puro de montanhas e recebendo as carícias da brisa do mar. Dizia ela apontando para a vista da escadaria da igreja:
__ Como não ser feliz acordar e olhar essa maravilha?
Olhei atentamente para as palmeiras antigas e altas da praça abaixo e ao fundo contemplando a briga do rio e do mar. Ela dizia que era muito feliz, que o segredo da idade com tanta energia era o trabalho diário, o carinho e atenção pelas pessoas e o prazer que ela tinha de limpar a capelinha, cuidar das roupas sagradas e conversar com os visitantes. Ela disse que fica observando as pessoas que adentram naquele piso antigo e vai se achegando para conversar e descobrir de onde vieram, o que faziam, fazendo um perfeito papel de acolhedora.
Ao sair da igreja ela nos presenteou com um longo abraço, afetuoso e não simplesmente ritualístico. Desejou boa viagem, uma volta e eu ainda aproveitei para dizer que ela precisava conhecer as igrejas de Minas, num despeito talvez, mas saudável, de mostrar que nas Gerais também se tem belas vistas embora o mar não nos banhe com suas águas e não nos refresque com sua brisa. Ela disse que sonha em conhecer nosso barroco e que todos os mineiros contam coisas maravilhosas.
Descendo a escadaria e observando já quase ao ocaso, vejo-a ainda na porta sorrindo enquanto penso na força daquela mulher e na sua alegria simples. Olho também para o pequeno rio que enfrenta o gigantesco mar, misturando-se a ele numa interatividade atrevida, ousada a enfrentar o seu grande desafio sem se intimidar com ele.
Foi uma bela visita. Mesmo não vendo todas as atrações da cidade absorvi a lição do segredo da felicidade. Lições tantas, num rosto enrugado, numa mulher batalhadora, numa simples vida cotidiana nos arredores de um lugar tão simples, tão bonito, tão normal. Segredos que não existem, apenas não vemos o óbvio, tão à nossa frente, tão ao nosso lado, tão próximo, mas impedidos que somos nos nossos afazeres e nas nossas portas trancadas nas nossas miúdas vidas, insignificantes, mesquinhas, fúteis e sei lá mais o quê, que nosso ensimesmamento não permite enxergar.
Obrigado Maria Paula!