De salto quebrado
Festa de formatura de uma prima.
Ela veio por consideração familiar. Não que a festa não esteja agradável, e quer bem a prima, portanto fica contente por ela, mas está tão cansada...
Começam a tocar umas musicas animadas que sacode a galera recém-saída da adolescência e ela fica mais cansada só de ouvir aquilo. Fala distraidamente com um ou outro da mesa e se pega tamborilando nervosamente. Olha disfarçadamente pro o relógio pra ver que horas pode sair, sem bancar a mal-educada. Meu Deus, só se passou meia hora desde que a festa iniciou, tem que dar mais um tempinho.
Relanceia os olhos em torno, vendo a animação geral e sabe que seu cansaço destoa daquilo. Pensa nas questões que deve resolver amanhã no serviço e fica tensa.
Que alívio ter muita gente envolvida nas discussões, assim ela pode ficar na sua.
Iniciam uma série de músicas suaves, muitas de sua geração e ela relaxa um pouco. Acompanha os compassos e isso parece aliviar seu cansaço. Precisa ir ao banheiro.
Levanta-se, e vai em passos elásticos em direção aos banheiros. Sem saber como, sente uma torção no tornozelo e percebe assustada que um salto resvala. Tropeça e imediatamente sente uns braços a segurá-la. Não cai por conta desse amparo que se tornou um abraço firme em torno de sua cintura. Recompõe-se e levanta os olhos chocada pra aquela figura. Está firmemente segura e seu espanto transforma-se em alegre surpresa.
Ele a olha com um olhar divertido, mas as mãos na sua cintura e a pressão daquele corpo contra o seu, denotam a seriedade do momento.
Levemente constrangida ela se solta e ele, a custo, afrouxa o braço. Alguns olhares mais atentos estão fixos nele e ele resolve falar.
- É melhor a gente dançar já que tu caíste nos meus braços.
Ela vai responder espantada quando vê o sorriso dele e relaxa com a brincadeira.
- Nada disso, tu me atacaste no meio do salão.
- Que ingratidão pra um calheiro que salvou uma donzela em apuros. Já não se fazem mais donzelas como antigamente.
- Verdade, mas o cavalheiro também foi muito ousado. Depois disso, só um pedido de casamento salvaria a honra da donzela...
Pronto, no meio da brincadeira, disse o que não devia. Não pode recolher a palavra e não sabe o que dizer. Sente o braço dele se afrouxar de sua cintura, enquanto a mão aperta a sua até quase quebrar. O clima mudou e ela sente vontade de fugir dali. Ele percebe, ela sente a tensão no corpo dele, mas ele não a solta. Continuam a dançar em silêncio e ela percebe que estão se encaminhando pra fora do salão. Ele a ampara por causa do salto.
Meu Deus, que falta de tato, mas foi sem querer, até pela emoção de vê-lo.
Estão no jardim e ele ajuda-a a sentar. Ela retira o sapato e esfrega o tornozelo. Tudo pra não olhar pra ele ou falar. Ele é todo silêncio e ela sabe que vão falar daquilo.
Parece passar uma eternidade e ela gostaria de gritar mas sabe que qualquer som quebraria o frágil equilíbrio daquilo. Percebe que ele acende um cigarro e olha-o de soslaio. Ela olha à frente, mas ela sabe que ele vê outras coisas. Está longe e por conhecê-lo, sabe que está controlando as emoções. Quer se desculpar mas sabe que é ridículo e teme que um avalanche de ambas as partes, acabe por soterrá-la. Espera.
- Faz muito tempo, não é? - a voz rouca e baixa diferente do tom brincalhão anterior, não é uma pergunta. É um comentário de si pra si.
Ela relembra aquele frustrado pedido de quase cinco anos atrás e resolve se defender.
- Soube que no ano passado tu noivaste. Te imaginava já casado.
- Por isso, tu voltaste? - a frase cortante é uma acusação.
- Tadeu, nós éramos quase adolescentes... isso não daria certo...
O olhar que ele lança pra ela, fuzila e ela sabe que eles não acredita no que ela diz.
- Esse tempo fora, te fez ficar mentirosa?
- Eu não... sei lá, mas o que tu querias?
- A verdade.
- A verdade é que tu vais casar, estás noivo. - seu tom é acusador e ela sabe que sofre, mas foi ela quem começou tudo, cinco anos atrás, portanto...
- Não estou noivo mais. Quis me casar uma vez e foi frustrante...
Ela abre a boca pra objetar e o olhar dele a faz calar.
- Eu vou falar, Laila. Nós não éramos tão bobos assim. Falamos muito, planejamos e de repente tu negas tudo e vai embora rapidamente. Custei a entender o fora.
- Eu não dei o fora. Conversamos e tu entendeste.
- Como não iria entender se tu deixaste claro que tinha mudado de ideia? só tinha que concordar. Aceitei e tu foste, leve como uma borboleta. Nunca entendi. Doeu.
O tom de voz dele antes exaltado agora é baixo, como se ele falasse só pra si. Ela quer dizer que doeu muito nela, mas que precisava tentar aquela outra via, mas não tem coragem, afinal deverá completar que se arrependeu mas não queria voltar.
O tempo passou, soube do noivado dele, sofreu, mas reagiu tranquila. Agora ela sabe que nada mudou e que daria tudo pra voltar no tempo.
Começa a cair um fino chuvisco e ela se levanta sem nem lembrar da dor do tornozelo e do salto quebrado. Só não cai porque ele imediatamente a segura. Aqueles braços que sempre lhe passaram a ideia de conforto, são um choque. Ela sabe que pode desabar, então diz que tirará os sapatos. Os pedriscos machucam seus pés mas ela prefere isso ao machucado que tem no peito. Ele se sente recusado e crispa a testa. Falam linguagens diferentes. Ela sabe que essa independência, esse nariz empinado dela é que os afastou naquele passado e olha pra ele de frente. Para, já com o chuvisco aumentando. Ele olha pra ela e de repente, eles se reconhecem. Há muito pra ser dito, mas eles precisam de tempo. Ele pega ela nos braços, sem pestanejar e antes que ela reclame, fala:
- Deixa de ser teimosa, as pedras estão ferindo teus pés.
Ela relaxa diante do tom firme e tranquilo dele. Aconchega-se ao ombro dele e aspira o cheiro tão conhecido. Nem a loção de barba ele mudou.
Sente o coração dele rápido e sabe que o seu também está assim. Olha-o e os olhos dele são serenos. Estão muito próximos e ela pensa em falar. Ele faz um gesto pra que ela se cale. Ela sorri e relaxa. Suspira fundo e se aninha. Sente ele relaxar e percebe que ele a aconchega com força.
Está de volta em casa, sente que voltou de muito longe. Não irá mais embora. Aquele abraço é sua casa. Conversarão depois, agora só quer viver esse retorno.
Onde foi que alguém disse 'eu só chamo este lugar de casa porque tu estás aqui'?