Dona Clô
Não consigo pensar em nada pois vejo a morte próxima, tubos e líquidos, e ainda não me acostumei com isso. Mas sei que deveria. Se é para ela que corremos velozes, dia após dia... se é o único resgate que nos espera, dívida após dívida... se é a única certeza que temos, dúvida após dúvida...
Vejo a morte, mas não a santidade. Vejo o fim de uma existência, mas não a perda. Vejo clara uma saudade, e é saudade do que houve, e nunca do que poderia ter havido. Enfim, vejo que há de restar muita coisa no brilho de uma luz que arrefece.
Restará seu riso muitas vezes debochado, a malícia tímida e a inteligência sutil. Os pratos que preparava sempre esperando mais gente, ou mais fome do que efetivamente tínhamos. Os muitos presentes, de uma generosidade alarmante, e as muitas obras de arte de suas mãos delicadas. O suave sotaque português, devidamente colonizado por anos e anos de vida do lado de cá do oceano. Os óculos francamente grossos, a infalível camiseta que usava por sob a roupa por imposição do médico, como queria que crêssemos. A vaidade que foi se tornando desleixo, a pouca atenção que se tornou alienante, a disposição para novidades que se tornou repetição.
Como ficaram as fotos e as corujas, seu espírito catalisador há de restar, intacto, pairando como uma aura sobre filhos e netos - bordando, uma última vez, as iniciais sobre um branco lençol de paz, e entrelaçando, com o esmero de sempre, muitas outras vidas. Como os fios de lã de seu impecável, irrepreensível tricô.