O ovo e o presságio

Deise havia acabado de premeditar. O inocente ovo prostrado ao lado da fruteira seria sua próxima vítima (ou ela seria vítima do ovo). O ovo parecia espreitar os anseios de Deise, e a fome anunciada pela moça, acabava de enfiar-lhe a lança sobre a crosta. Mas não era apenas fome, Deise apostava sua vida no ovo.

Geralmente, confiava o futuro em pequenas adivinhações. Era um sistema simplório, um jogo: acertar os tipos de moedas recebidas em um troco, o nível de refrescância nas embalagens das balas, respostas presumidamente fáceis. Se acertasse, o ânimo envolvia-lhe o peito, nutrindo a esperança que plantara a exaustidão. Se o resultado fosse aquém de esperado, mil interrogações pairavam gradativamente dos pés a cabeça, envolvendo-a, formando círculos que a deixavam atônita. Afinal, qual o fundamento dessa técnica? A quê serviria as adivinhações? eram testes de iminência. O futuro contado por cartomantes improvisados, irrisórios, inadequados, que não tinham a menor vocação para a cartomancia.

O vínculo entre Deise e os escolhidos, a aposta entre o Yin e Yang, Apolo e Dionísio, e qualquer filosofia de botequim agora cabia ao ovo: gema e clara, sim e não. Deise, espertamente pensou: se o ovo estiver podre terei maus resultados, se não, terei sorte. O então quebrado e falecido, respondeu-lhe como um bola de cristal a amargura de seus anseios: defeituoso, fétido, deteriorado na tigela. Deise estremeceu, sentia suas entranhas gélidas, e como grilos depois da chuva, as interrogações começaram a surgir. Seria infecundo? Qual a probabilidade de um ovo aparentemente saudável estar impróprio? Seria vingança do ovo? Não quis acreditar, que venha outro ovo. "Este jogo diretamente na panela, no óleo fervoroso!", não quis apostar no referente ovo, de aparência robusta, casca mais clara, de maior proporção, apesar de que o primeiro parecera mais velho. Mas teve um pensamento mal pensado, o seu âmago cutucou o tormento: e se este ovo também não compensar? Resolveu logo atirar a sorte ao fogo, "que resolva a cálido!".

Deise, confusamente não quis acreditar no que viu. Dois ovos podres em uma única noite de verão. A gema não tinha forma definida, a clara era mais incolor, mais corrente que o normal, misturava-se ao óleo, à gema, à caçarola, ao mundo. Errou a mão no sal. Seria também um futuro demasiadamente salgado? Não reconheceu o acontecido. nunca havia errado anteriores premonições, estava chocada (essa não é a melhor expressão para o momento). Quis abrir ligeiramente o pão. Seus olhos pasmavam ainda após a terceira mordida. Abocanhava sua vida, amordaçava e triturava entre os dentes seu futuro, resguardaria no estômago por pouco tempo um jogo inteiro de vivências. Quanto mais comesse o pão, menos vagarosamente a aflição desapareceria.

Ao findar o pão, findaria o sofrimento. Enganada em suas crendices, acreditava assim, e era melhor assim. Pão e ovo da discórdia.

Liz Agostinho
Enviado por Liz Agostinho em 29/01/2013
Reeditado em 29/01/2013
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