Uma linda história de amor: meus avós paternos - Passamento

Meu avô já se encontrava, por mais de cinco anos, cego e

entrevado. A família tinha se mudado para Sabará, os filhos todos

adultos, casados, muitos filhos, como ele. Tia Isabel tinha sido

abandonada pelo marido e então morava com os meus avós. Gênio

difícil, amarga, muito magra, seca por fora e por dentro, dizem. Uma

vez nos visitou em Nova Era. Eu tinha uns três anos. Ficou um mês

l'em casa. Minha mãe contava, com tristeza, da experiência. No final

da vida, doente, acamada, foi a minha mãe, já em Sabará, quem

cuidou dela. Suas últimas palavras foram pedindo perdão à minha vó,

meu pai e minha mãe. Minha vó, é claro, a perdoou, lá do céu.

Os meus tios se espalharam pelo Brasil. Uns em São Paulo;

outros em Minas ( 03 em Sabará ); alguns no Rio de Janeiro. Eram

muitos no total, quinze. Meu pai contava que conheceu o seu irmão,

Tio Dário, quando tinha oito anos e só foi vê-lo, novamente, aos

vinte anos. Depois nunca mais. Coisas da vida. Meu pai era o caçula...

Minha vó levantava-se muito cedo. Dormia em cama separada,

mas atenta ao meu avô, dado à sua condição. Cuidava dele com o

mesmo carinho dos tempos de namoro. Quase não dormia, sempre na

atalaia. Quando ele acordava, os remédios, alimentação, higiene, já

o aguardavam pacientemente. Conversavam alegremente, dizem.

Riam muito, de mãos dadas. Ela nunca o deixava só. Nos intervalos

dos afazeres corria para perto dele. Meu avô não se queixava, não

reclamava, muito pelo contrário. Agradecia. Meu pai me disse que

ele nunca perdeu a fé, nem mesmo culpou a Deus pelo seu infortúnio.

Sempre tinha uma palavra de incentivo, de conforto, de amizade e

amor para a família e todos que o visitavam. Era muito querido na

região. Adorava ouvir piada de português. Ria muito. uma era especial.

" Dois portugueses discutiam sobre a pronúncia da palavra relógio. Um

dizia: Mas tu és muito burro, ora pois, se diz " rilógio " ; o outro

retrucava: pois burro és tu, se diz " rulógio ". Vovô ria e os outros

riam com ele ou dele.

O ano: 1954. Tia Isabel estava mais azeda do que sempre. E

quando isto acontecia, descontava sua raiva na minha vó, dizem. Só

que, sem se queixar com ninguém da família, vovó andava sentindo

uma dor incômoda e contínua no meio da cabeça. Na farmácia ela, ao

comprar os medicamentos do vovô, comentara com o farmacêutico,

que mesmo lhe medicando, a aconselhou procurar atendimento de um

médico. Mas ela foi? É ruim, heim...

No fogão à lenha, cuidando do almoço, calada, ouvindo as ofensas da

da minha tia Isabel, que chegou inclusive a ameaçá-la, vovó levou

uma das mãos à cabeça e caiu no chão; minha tia se assustou, e

ao tentar levantá-la, chamando-a, perguntando o que ela estava

sentindo e vendo que ela não respondia, saiu para a vizinhança

pedindo socorro. Na rua morava um médico que recusou o

atendimento. Disse que só atendia funcionário da Belgo Mineira,

e não era o caso da família do meu avô. Ele se aposentara pela

Central do Brasil.

Minha avó entrou em coma. Quadro irreversível. Os filhos

vieram todos, menos o Tio Dário. Ninguém o localizou. Acharam,

por bem, não contar para o meu avô. Deram uma desculpa. Que

ela estava em Belo Horizonte, na casa da filha Albertina, matando

saudades dos netos. Saíra cedo, ele ainda dormia. Ela voltaria breve.

Não se preocupasse. A casa estava cheia pois os filhos vieram vê-lo.

Matar saudades, junto com os netos....

Minha vó não se entregava. Foi um aneurisma fulminante. Mas

ela não se entregava. Dois dias se passaram. Tia Isabel sofrendo da

culpa. O clima, dá pra imaginar, não? Foi quando chegou o sr. Cecílio,

fotógrafo e espírita. Após orar, silencioso, pela minha vó, ele chamou

tio Joaquim, o mais velho, e lhe disse:

__ A sua mãe, nossa estimada amiga, só fará o passamento quando

ela sentir a presença do sr. Antonio, seu pai...

Todos se reuniram e aceitaram a sugestão. Afinal, respeitavam e

muito o sr. Cecílio. Vovô, dizem, chorou em silêncio. Não fez nenhum

comentário, não acusou ninguém, pediu que o carregassem até vovó,

a sua alma gêmea, o eterno amor de sua vida. Assim que o colocaram

próximo a ela, ele, com ajuda, segurou uma das mãos de minha vó,

a mão que sempre andava dada com a dele. E disse:

__ Minha querida, foi uma dádiva de Deus, você na minha vida. O meu

amor por você é infinito e obrigado por ter me dado filhos que muito

me orgulham. Obrigado por me amar tanto e cuidar com tanto carinho,

respeito e amizade de mim... vá em paz, meu amor, que o Senhor

receba você com festas... e não se preocupe, breve estaremos

juntos.

Lagrimas desciam dos seus olhos e de todo mundo. Tia Isabel, dizem,

soluçava. Uma lágrima surgiu num dos olhos de minha vó, junto com

o seu último suspiro.

Duas semanas após o enterro de minha vó, tia Cecília, saiu do

quarto de vovô chorando. Eram sete horas da manhã. Ele fora se

encontrar com vovó. E estava sorrindo, dizem.