O homem e o cachorro preto

Desço do ônibus depois de um dia fatigante. O corpo está exausto, mas a cabeça está a mil. Vejo sentado, ao lado do bar, um homem, no alto de seus cinqüenta e muitos anos. Ele usa uns óculos redondos, estilo professor, e na mão esquerda uma coleira comprida o liga a um enorme cachorro preto, estendido de forma espaçosa na calçada.

Chama-me a atenção o contraste de tal figura tão caseira em ambiente tão urbano. Os pensamentos explodem, como fogos de artifício na mente; quem ele poderia ser? O que estaria fazendo ali, aquelas horas da noite?

Estando ele sentado com o cachorro, faz-me pensar que foi dar uma volta com o animal e parou a fim de recuperar as forças dos corpos velhos de ambos. Suas roupas me dizem que não se trata de um mendigo, que só tem a companhia de seu animal para conforta-lo. Os óculos me fazem indagar sobre sua profissão: seria ele professor? Cientista? Advogado? Ou, ao contrário do que tudo indicava, poderia ele ser um gari ou um camelô? Pela idade, estaria já aposentado?

Por estar ao lado do bar, pergunto-me se não é um bêbado, que faz dos bares sua casa, e fez do cachorro seu táxi, que o guiará para a morada. Ou talvez tivera um dia cheio e parou para beber um chope? Mas não parou no primeiro e nem por isso seria um bêbado.

Ele tem um olhar confuso e me faz indagar: estaria este homem com amnésia? Poderia ele ter saído de casa para um passeio rotineiro e ocorrera uma fatalidade que o arrancara a memória e o deixara aturdido daquela forma ? Ou então estaria ele nesse estado há tempos, e outros estivessem à sua procura, angustiados? Teria ele família? Ou quem pudesse ser o autor de tal busca?

Será possível que estivesse a espera de alguém? Ele olha além, pensativo, o que me indica esta possibilidade. Se esperava, quem esperava? Aguardava alguém ou algo que jamais chegaria? Quem sabe não fosse ele o dono do cão e esperava pelo verdadeiro dono do bicho. A expressão serena e a postura autoritária lhe fornecem um ar de paternidade. Poderia ele estar esperando seus filhos? Por motivos relevantes posso supor que não tenha tido filhos. Estaria ele esperando por sua mulher?

Naquela soleira deprimente, a altas horas da noite, o homem se posta na calçada com o cachorro preto. Não sei quem ele é, mas o julgo pela aparência e penso no que ele poderia ser, e isso é o suficiente para mim, pois me inspira a escrever esta crônica.