Lá das alturas

Ainda estamos no chão, mas em movimento, vivendo aqueles demorados instantes em que o avião se dirige à pista de decolagem. Há cada vez mais pessoas querendo partir, e por isso precisamos esperar a nossa vez. Enquanto isso, distraímo-nos assistindo a televisão, pois também aqui elas chegaram, e já não há mais muito lugar onde uma pessoa se obrigue a pensar na própria vida. Mas o comandante nos avisa que a decolagem foi autorizada, e então todos nós voltamos a prestar atenção no avião, e creio que alguns até mesmo suspendem a respiração enquanto aceleramos loucamente rumo aos ares.

Estou sentado à janela e sinto o exato momento em que deixamos de tocar o solo. Hesito, mas por fim olho para fora e vejo a cidade se afastar. Tudo ocorreu perfeitamente. Súbito, o piloto resolve fazer uma curva no ar – estávamos na direção errada. Já andei várias vezes de avião, mas ainda não me acostumei com a sensação de voar inclinado, como acontece durante as curvas, e talvez por isso eu tente sempre compensar meu desconforto inclinando meu próprio corpo para o lado oposto – que vem a ser o do passageiro ao meu lado, o que exige certo cuidado. Mas tudo indica que meu esforço funciona, pois logo o avião volta a voar em linha relativamente reta.

Há um canal na televisão que mostra o mapa de vôo. Os números assustam: estamos a mais de 800 quilômetros por hora, a 11 quilômetros de altura. Vejo a cidade que estamos sobrevoando e tento identificá-la lá embaixo, enxergar alguma coisa que permita dizer que um dia já a vi e conheci, ainda que nunca tenha pisado nela. Mas não consigo ver muita coisa. É tudo pequeno demais. E quando de repente apareceu algo realmente grande, gigantesco mesmo, eu nem precisei olhar no mapa para conferir: estávamos sobrevoando São Paulo. O engraçado é que toda essa grandeza também parece insignificante ali de cima, e eu fiquei a imaginar qual é a visão que Deus tem de nós lá do céu. Que minúsculos que somos! Vivemos nossa vida cheios de problemas fundamentais, de decisões que nos afetam profundamente, sempre dispostos a nos justificar, amando aqueles que achamos merecer, sofrendo invariavelmente, alguns de nós têm motivos para matar ou morrer, e no fim das contas não passamos de um rastro lá embaixo, que Deus só consegue enxergar porque realmente é Deus. E o mais curioso, para nossa sorte, é que no meio dessa insignificância toda, no irrisório quadradinho que nos coube viver, no meio de uma pequena e rara porção de terra, ainda assim temos o direito de reivindicar coisas a Deus, de apresentar nossas complicadas questões e – oh glória! – de ser até atendido.

Muita coisa boa eu não consigo entender. Não sei como esse negócio voa, quando tinha absolutamente tudo para não voar. Isso daqui é uma loucura, é muita pretensão para o ser humano, e no entanto, na imensa maioria dos casos, dá certo! Tenho sempre a sensação de milagre – ou, no mínimo, a condescendência, a tolerância divina.

Quando aterrissamos, estou certo de ter passado por uma experiência extraordinária, e não hesitaria em contar cada detalhe da viagem, caso isso realmente interessasse às pessoas que não tiraram os seus pés da terra.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 26/01/2013
Reeditado em 26/01/2013
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