SUA MAJESTADE

 

(fotomontagem do autor)

 

Estou na serra! Fugi do asfalto com medo do dia 21 de dezembro, anunciado como o fim de uma fase da humanidade, o que, para desdouro dos Maias, não aconteceu!

Há muito não vinha aqui e o que encontrei não me agradou nem um pouquinho!

Meu ipê infestado por erva de passarinho; o castanheiro, que nos agraciava com seus frutos todo o fim de ano, atrasou e só em janeiro poderemos comer seus frutos, já fora de hora; as mangueiras continuam improdutivas; os pés de cajá-manga só estão com aquele verde brilhante que os caracteriza; as tangerineiras poncã ainda não deram o ar de sua graça; os cajueiros, jambeiros, jabuticabeiras,cerejeiras, abacateiros , laranjeiras e pessegueiros continuam calados, em estado letárgico, assim como em compasso de espera...

A alegria maior ficou por conta da mata, agora bem mais fechada, quase uma floresta, de um verde forte e viçoso que nos abraça com a força da terra.

No lado norte, os pinheiros araucária se adensaram e formam, agora, um maciço bloco de grandes tufos verde-escuro.

Os pássaros, com o vazio dos seus comedouros, tomaram outro rumo e ar ficou parado, sem graça . Apenas me deu mais ânimo a presença matutina das saracuras com seu pio soluçante e, bem perto da casa, a morada de um tatu. Tínhamos a visita regular de um grande lagarto, o Justino, que andava desaparecido, mas que me deu o prazer de surpreender um filhote seu passeando, tranquilamente, em torno da piscina..

Felizmente, o horizonte recortado de montanhas ainda está lá, num azul cinzento, esbatido sobre um céu de puro anil, onde flutuam, mansamente, os enormes flocos de algodão das brancas nuvens e, também, a onda de hortênsias em plena florada, com tons cambiantes de azul e rosa, criando um grande mosaico de imensa alegria.

Reabastecidos os comedouros, com frutas , alpiste e canjiquinha, os nossos amiguinhos alados começaram a retornar!

Os primeiros a chegar foram os amalucados e saltitantes tico-ticos; em seguida, os ágeis papa-capins. Na sequência, surgiram os azulões, brilhantes como aço; logo vieram os malfalados goderos, que atendem, também, por vira-bosta, chupim, engana-tico e outros. Parasitas naturais, que invadem ninhos alheios, descartam os ovos que lá estão e deixam os seus, que serão chocados e os filhotes alimentados pelos pais enganados. Não é à toa que esses famigerados lembram corvos! Chegam, em seguida, os belos e tímidos sanhaços, com sua vestimenta cinza-azulado e rapidíssimo voo. Duas maritacas, curiosas, comparecem também, mas o repasto é fino demais para elas, que dão umas pequenas bicadas e se vão, em busca de mesa mais substanciosa.

Mas nenhuma dessas avezinhas contrasta com o pano de fundo verde-escuro do velho castanheiro, de forma que falta, ainda, alguma coisa mais viva, algo que levante, com seu colorido, o até então tom- sobre- tom.

O primeiro clarim colorido chega com os buliçosos canários, salpicando o cenário com o amarelo-gema de seus corpinhos e. logo, após, o gigante bem-te-vi, com seu peitoral amarelo de cantor de ópera.

Mas ainda não estou satisfeito; o contraste é pequeno para tanta vastidão! Quero mais, sinto que um choque cromático mais contundente está faltando e, aí, ele chega. Primeiro, na forma de uma fêmea inexpressiva, coitada, mas que, em compensação, é dotada de muita valentia, chegando a ponto de fazer correr (ou voar) um bem-te-vi de solene peito empinado, qual mordomo inglês., que teimava em permanecer ocupando o prato de fruta, impedindo que seu companheiro se banqueteasse. Logo, logo, como atendendo a um silencioso chamamento, um rubro raio corta o ar e vai pousar junto à sua companheira.

O púrpura do seu corpo tem um densidade impar; ele é como vivamente iluminado, parece que traz com ele o fogo divino, é irradiante e, por isso e infelizmente, é criminosamente caçado. Há um pássaro que se chama cardeal, belo também, mas se ele é cardeal, o magnífico e esplendoroso Tié -Sangue enverga um manto papal.

Ali está ele, puro rubi vivo, e eu me comprazo em vê-lo, respiração suspensa, mudo e estático para não assustá-lo. Ele come sua fruta e voa para o velho castanheiro, sobressaindo ali como um zulu na Ásia.

Agora, tenho certeza da razão pela qual o velho castanheiro retardou sua frutificação; pura nostalgia, saudade do suave roçar das asas da passarada, procurando abrigo em seus galhos, pesando tão amenamente que mesmo seus ramos mais finos jamais vergavam.

Ouso dizer, mesmo sob pena de ser taxado de idoso mentiroso (a rima foi proposital), que o verde do velho castanheiro mudou; ficou mais brilhante, e, após a visita régia, todos os seus ouriços se abriram em largo sorriso, deixando antever seus polidos dentes marrons!

Longa vida à Sua Majestade , o Rei Tiê-Sangue!

 

 

 

(não deixe de ler a colega Giustina)

 

 

paulo rego
Enviado por paulo rego em 25/01/2013
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